Prosa e Verso: O Globo

Livros Publicados

História da Literatura Hispano-Americana

Diálogos Oblíquos

A Máscara e o Enigma

Antologia General de La Literatura Brasileña

El Espacio Reconquistado (Estudios de literatura hispanoamericana) Kindle Edition

Bella JozefO estilo accessível de Bella levou-a escrever mais de 500 artigos para os Jornais Diário de Notícias, Estado de São Paulo e O Globo, entre outros.

Agradecemos a Miguel Conde e Manya Millen por nos terem enviado os artigos dos últimos anos que Bella contribuiu para o Caderno Prosa e Verso de O Globo.

Octavio Paz 1998

Produto: O Globo
Data de Publicação: Sábado 18 Julho 1998
Página: 6
Caderno: Prosa e Verso

O crítico e a monja

O ensaísta mexicano analisa a poetisa que foi a mais pura voz do barroco do século XVII

Legenda da foto: OCTAVIO PAZ: seu ensaio sobre a vida e a obra poética de sóror Juana sai no Brasil com 15 anos de atraso

Sóror Juana Inês de la Cruz, as armadilhas da fé de Octavio Paz .Tradução de Wladir Dupont

Editora Mandarim, 712 páginas R$ 56,00

Saudamos a publicação, em português, do fascinante ensaio de Octavio Paz, “Sóror Juana Inês de la Cruz, as armadilhas da fé”. Cabe, apenas, a observação de que sai com 15 anos de atraso, como costuma acontecer com várias obras importantes da América Latina. Não custa sonhar com o dia em que as edições, aqui e lá, sejam concomitantes ao seu aparecimento para servir de mais um elo no processo de integração de nossos países. O México é um país de contínua contribuição crítica, que tanto deve a Alfonso Reyes e, agora, a Octavio Paz. A ensaística mexicana instaurou uma interpretação da literatura como um sistema dentro do vasto sistema da cultura.

Crítica literária com valor estético

A crítica de Octavio Paz, um dos mestres do ensaio contemporâneo, inseparável de sua poesia, é um modelo de literatura viva e de conhecimento, integrados harmoniosamente. Sua exposição, sendo reflexiva, está dotada de uma apreensão poética do universo. O valor crítico soma-se ao estético, dando mostras de penetração e de certo domínio visionário, em que o poeta deixa transparecer uma sólida cultura e uma lucidez surpreendentes. Forjou um instrumento crítico pessoal, uma doutrina de pensamento coerente a que foi fiel. O que ele faz é transmitir-nos as experiências de seu trabalho criador num discurso ancorado no humanismo. Intelectual a quem não interessa o que está definido nem cristalizado, prefere perguntar a afirmar, sugerir a indicar. Quando escreve sobre matérias tão diversas como o erotismo ou a filosofia oriental, o pensamento de Lévi-Strauss ou a consciência marxista, incorporando as conquistas da psicanálise e a subversão do surrealismo, o que está fazendo é iluminar os problemas cardiais de nossa época e delimitar o espaço das possíveis respostas.

Perguntando a si mesmo se poderia dizer, como Flaubert, “Madame Bovary, c’est moi”, Octavio Paz respondeu que não poderia afirmar “Sóror Juana sou eu,” mas que se sentia identificado com a monja mexicana.

Vanguardas trouxeram o barroco de volta

Deve-se às vanguardas literárias a popularidade do barroco no século XX, que encontrou em toda a desmesura ou aparente incoerência um deleite a opor ao tranqüilo realismo burguês do século anterior. Há um auge do barroco no mundo hispânico, que começa nos anos 20, não só na literatura de criação, como também na crítica. A geração de 27 na Espanha ressuscitou Gôngora no terceiro centenário de sua morte, fazendo surgir um brilhante exegeta, Dámaso Alonso. Jorge Luis Borges dedica páginas elogiosas a Quevedo e um poema a Gracián. Octavio Paz, em Salamandra, escreve um poema que é uma glosa do célebre soneto de Quevedo “Amor constante más allá de la muerte”. Os poetas do grupo Contemporâneos leram “Sóror Juana” com atenção e interesse. Podemos explicar o fato pela semelhança entre barroco e vanguarda, apesar de suas origens diferentes. O poeta barroco, diz Paz, “quer descobrir as relações secretas entre as coisas e outro tanto afirmaram e praticaram Eliot e Wallace Stevens”.

Sua obra monumental “Sóror Juana Inês de la Cruz, as armadilhas da fé”
constitui-se em uma grande contribuição dada pelo autor para se entender um período, feliz conjunção de história, biografia e crítica literária, pensada e escrita entre 1976 e 1981. Obra de um poeta analisando outro poeta, um ensaísta analisando o contexto, os paradoxos de uma época e sua ideologia, através da universalidade de uma poetisa mexicana do século XVII. Preocupado com a construção da “outridade”, Paz analisa a complexidade do discurso de sóror Juana, que revela em suas contradições a condição do sujeito colonial. Vai de seu sentimento e intuição à constatação da feitura de uma obra “única, original e auto-suficiente”. Passa pelas melhores fontes biográficas em relação a sóror Juana, sua “Respuesta a Sor Filotea” e a biografia do jesuíta Diego Calleja. Acompanhamos a infância, a entrada no convento, a criação de suas diferentes obras, até a renúncia às letras, a dispersão de sua biblioteca, o silêncio dos últimos anos e a morte prematura. Durante muitos anos, sua fama literária sofreu os efeitos negativos dos preconceitos antibarrocos dos neoclássicos.

A freira “criolla” reproduziu modelos hegemônicos, dando-lhes feitura original e atualizando as poéticas clássicas, tornando-se a mais pura voz do barroco do século XVII em língua espanhola. Desta obra, verdadeiro diálogo com uma figura “situada no devir do seu tempo e do nosso” (Garcia-Posada), poder-se-ia dizer o que Paz afirmou em relação a Breton: “Escrever sobre Andre Breton que não seja com a linguagem da paixão é impossível”.

Toda a historiografia literária do período colonial e toda a perspectiva acadêmica tradicional não reagem contra os ressábios colonialistas que interpretam a realidade cultural latino-americana, a partir da perspectiva das antigas metrópoles. A aproximação tradicional a este período o vê como reflexo de modelos metropolitanos. Os textos mais importantes da literatura americana do século XVII aparecem como fiéis às formas canônicas. Assim tem sido também julgada a obra de sóror Juana Inês de la Cruz: como um capítulo da história literária espanhola.

Da paixão surge uma nova consciência

Octavio Paz, além de analisar a qualidade da produção literária da monja, deseja reavaliar o “espírito de época”. A análise sobre a importância do barroco levanta problemas crítico-historiográficos que se projetam sobre o desenvolvimento posterior da literatura continental.

Naquele momento aparecem as primeiras evidências de uma consciência social diferenciada no seio da sociedade “criolla”. Paz revê juízos e métodos críticos para concluir dizendo que sóror Juana Inês de la Cruz, apesar dos ecos e influências, sempre foi ela mesma, “quase sempre disse o que só ela podia dizer”. Disse, também, algumas coisas que ninguém dissera antes e que “só dois séculos depois seria dito em outras línguas”.

Os poemas de amor são os que melhor a definem. Com uma experiência limitada, encontra na paixão uma clara inteligência transformada em consciência. O importante “Primero sueño” representa a aventura do conhecimento. Com esta obra inicia-se “a confrontação da alma solitária diante do universo que mais tarde será o eixo principal da poesia do Ocidente”. Para Paz, nada existe de semelhante até o aparecimento de “Un coup de dés”: o protagonista de ambos é o espírito humano, sem nome, sem história nem pátria, diante do céu estrelado.

Em minhas publicações e conferências sobre sóror Juana Inês de la Cruz tenho usado o termo “feminista”, embora sabendo que nem o termo nem o conceito existiram no século XVII. Mas é indiscutível, como também assinala Paz, que “a consciência de sua condição de mulher é indissociável de sua vida e obra”. Sóror Juana pede a educação universal para as mulheres, em instituições criadas para esse fim.

As “armadilhas da fé” foi escrito para confirmar e debater idéias caras a Paz, principalmente a autonomia da obra de arte, contra as ortodoxias político-religiosas e a falsificação da história que elas praticam. Negador de determinismos, seu compromisso sempre foi com a liberdade. Para ele, o pensamento político deve ter por tarefa reconstruir a pessoa humana. Contemporâneos de outras perseguições ideológicas, podemos compreender a paixão político-religiosa da crítica dos prelados à atividade literária de sóror Juana: eles reprovavam a “funesta mania” de escrever versos como sua contínua comunicação com o mundo. Ao receber o “Prêmio Jerusalém 1977”, Octavio Paz disse: “O verdadeiro mistério não está na onipotência divina, mas, sim, na liberdade humana”.

Razão e vida, sensibilidade e espírito (que sempre pautaram sua existência), não foram essas as características de Sóror Juana Inês de la Cruz?

BELLA JOZEF é ensaísta, autora da “História da literatura Hispano-Americana” (Francisco Alves)

Abel Posse 1999

Produto: O Globo
Data de Publicação: Sábado 20 Novembro 1999
Página: 4
Edição: 1
Editoria: Prosa e Verso
Caderno: Prosa e Verso
Crédito: Bella Jozef
Tipo de matéria: Crítica

Em busca de um Che Guevara mais real no centro do universo da ficção

Abel Posse realiza em ‘Os cadernos de Praga’ eficiente exercício de meta-história

Legenda da foto: CHE GUEVARA: dúvidas existenciais na temporada passada na Tchecoslováquia pouco antes de morrer

Cadernos de Praga, de Abel Posse. Editora Record. Tradução de Vera Whately, 254 pgs. R$ 25

Abel Posse nasceu na província de Córdoba e educou-se em Buenos Aires.
Diplomata de carreira, publicou 11 romances, todos interligados, e recebeu vários prêmios importantes: o Prêmio Diana-Novedades de México e o Esteban Echeverría, entre outros. “Los perros del paraíso” obteve em 1987 o maior prêmio literário na América Hispânica, o Rômulo Gallegos. A crítica considera-o como um dos mais originais renovadores do relato histórico.

O interesse pela incorporação da História é, de certo modo, uma volta às origens da literatura hispano-americana, que nasceu com a crônica e a historiografia indiana. A ficção pós-moderna desmascara o etnocentrismo europeu para questionar o que ficou marginalizado pelo discurso redutor da história oficial.

Autor cruza vários discursos sobre o revolucionário.

A reescrita da História, por uma nova postura estético-ideológica, sem pretensões de objetividade, fornece, assim, um feixe de opções narrativas que enriquecem o texto ficcional. A história é narrada do ponto de vista americano, em textos indagadores e críticos do passado coletivo. Essas versões inventivas coincidem com as linhas de pensamento representadas por Roland Barthes, Michel de Certeau e Hayden White, cujos ensaios questionam a tradicional distinção entre discurso histórico e discurso ficcional e afirmam a função legítima do imaginário na representação do passado.

O discurso de poder da História relegou ao silêncio as terras do Novo Mundo. Desmitificando aqueles mecanismos, Abel Posse evita cair no dogmatismo dotando os fatos selecionados e interpretados de novos significados.

“Os cadernos de Praga” inicia-se com uma citação de Kierkegaard: “Os grandes ficarão na recordação (…) mas quem esperou o impossível foi o maior de todos”. Com a variedade de pontos de vista, textos que se cruzam, diálogos, monólogos, diários, numa linguagem nutrida da ambigüidade das múltiplas vozes do discurso, é uma recriação dos cinco meses que Che Guevara teria passado em Praga, episódio silenciado em suas diversas biografias. Antes de viajar à Bolívia, para o salto final da morte, em 1967, debate-se entre fantasmas e solidão.

O narrador estabelece um diálogo intertextual que recupera as vozes e versões que têm contado a história e as representações do Che em formalizações diversas. Resgata uma vida cheia de contradições, que ajudou a cimentar as bases do mito no imaginário popular. Para Posse, o mito do Che é “a imagem possível de que a vida pode ter uma dimensão heróica. São os homens apaixonados os que criam a história”.
Considera-o o mito universal de rebeldia diante do que denomina “covardia política, mentalidade cinzenta, falta de sonhos e triunfo da mediocridade”.

Sobre um fundo de veracidade histórica, parte do real que pesquisou em Cuba, Argentina, Tchecoslováquia e Espanha, onde entrevistou contemporâneos de Che Guevara para articular uma consciência crítica da versão oficial dos fatos. Recusa a tese defendida por Regis Debray, que vê o Che como suicida. Oferece uma figura solidamente conformada do protagonista mas nunca monolítica.

Não dá uma resposta inequívoca, conservando sua complexidade e seus múltiplos rostos. A época evocada pelo romance está claramente delimitada e trata de seguir rigorosamente a informação histórica mas é o elemento ficcional que fornece a verossimilhança. Faltava, em relação ao.protagonista, a “crônica da intimidade”, o homem que “cumpre com o objetivo do romance que é transformar a vida em destino”.

Na narrativa de Posse, o homem se sobrepõe ao mito

Pela forte presença do referente pode-se esquecer seu estatuto ficcional e tendemos a identificá-lo como uma pessoa (já que é personagem histórico). No caso do romance de Abel Posse, as subversões praticadas pelo narrador preservam o modelo codificado mas não se esgotam no gesto do clichê.

“O romance é o triunfo da vida sobre a ideologia”, segundo Bakhtine, e “todo romancista pode, como um mago, transformar a morte em destino e a história séria e cronológica em realidade humana”. Para Abel Posse, “o escritor latino-americano, nesta hora de decadência, é o herdeiro da maior aventura literária deste século. Está convocado a essa grande reflexão sobre esta América dominada, indecisa para nascer, para criar sua justiça e seu estilo de vida”.

Ao perguntar-lhe o que têm em comum seus personagens – Colombo, Lope de Aguirre e Che – Posse respondeu-me: “A nostalgia do heroísmo.
Talvez uma rebeldia contra a proposta do homem domado e da vida submetida onde a liberdade se confunde com o egoísmo ou o conforto individual”.

Abel Posse encontrou sua voz. Sem pretender escrever romances históricos, vai à metahistória para compreender nossa época, nossa raiz, nossa ruptura. Busca os mitos sepultados no silêncio espesso da cultura da dependência. Faz da História algo presente, quando o ontem e o hoje olham um para o outro.

BELLA JOZEF é crítica literária e autora da Historia da Literatura Hispano-Americana. Livraria Francisco Alves.

Carlos Fuentes 1999

Produto: O Globo
Data de Publicação: Sexta-Feira 25 Junho 1999
Página: 6
Editoria: Segundo Caderno: SC
Caderno: Segundo Caderno: SC
Crédito: Bella Jozef
Tipo de matéria: Reportagem
Chamada: 1 página:
PP:Primeira Página

Romances que reescrevem História do México

Para o escritor mexicano, a arte da palavra e da imaginação recria o passado, permitindo a transformação do real em fantástico

O romance, para Carlos Fuentes, é o espaço do possível: partindo do passado, podem-se ensaiar mudanças para o futuro. Seu esforço de renovação está em consonância com seu conceito sobre a nova consciência do escritor latino-americano, que “se converteu no que é verdadeiramente um escritor, isto é, um publicano, um homem que participa do pecado, da culpa, que se mancha, que está imerso numa situação comum a todos os outros homens”.

As obras de Fuentes refletem a corrente da narrativa que se segue à Revolução Mexicana de 1910: uma maior inquietação pela busca das interioridades dos personagens e a situação, além da superfície da trama. Retoma os temas da Conquista e da Revolução, momentos-chave de seu país, como forma de entendimento da historicidade e do caráter universal da cultura mexicana. Pretende interpretar literariamente, através da ficção, a vida histórico-política, para dizer o que a História não disse. Na procura da interpretação do passado, aborda freqüentemente a mitologia mexicana.

Livros buscam resgatar identidade perdida do país

Toda a sua ação está orientada no sentido de restituir aos mexicanos a identidade primigênia, perdida após a conquista. Às vezes sucedem-se inusitadas superposições, como no caso de “A morte de Artemio Cruz” (1962), em que o protagonista é, a um só tempo, herói e contra-herói.
Em “Terra nostra” (1975), romance sobre o poder, de estrutura circular – como “Las buenas conciencias” (1959) – reescreve grande parte da História do Ocidente, centrando sua atenção nos alvores da Idade Média e no enfrentamento cultural entre a Espanha Imperial e o México pré-hispânico. A história das cronologias exatas, os fatos épicos, dão lugar a uma visão alternativa do passado onde os elementos fantásticos parecem reais e os aparentemente reais são o resultado da imaginação do autor.

Na memória, a possibilidade de continuar vivendo

Fuentes propôs um reordenamento não-cronológico e não-linear do conjunto de sua obra sob a denominação de “A idade do tempo”, sugerindo a dupla dimensão temporal de mito e História, memória e esquecimento. A memória será a possibilidade de continuar vivendo.
Parte da premissa de que “há muitos tempos na História, não há um só reversível, mas existem os tempos que pregam um regresso ao passado”.
No espaço em que o romancista histórico-político faz circular a representação, alegoriza-se um presente para explicá-lo.

O marco de referência é a própria tradição literária hispano-americana. Segundo Fuentes, embora tenha havido tempo sem romance, nunca houve um romance sem tempo. Há um tempo finito em que se escreve com a esperança de que haja um tempo infinito em que se lê.
O passado histórico se faz presente através da cultura. O romance, como produto cultural, traduz os conflitos da relação entre o ser próprio e o alheio, o passado e o presente, mediante uma constante admissão do plural e do diverso na linguagem e na vida. Sem a visão do passado não se pode compreender o presente ou se ingressar no futuro.
Fuentes preocupa-se pela reescrita da História. O passado é um âmbito aberto e vivo, esperando sua reinterpretação. Acreditando no poder da imaginação e da cultura, considera a literatura como resgate, defesa e recriação constante.

BELLA JOZEF é professora emérita da UFRJ, autora de “História da Literatura Hispano-Americana”

Correção publicada no dia 26.06.1999

Por problema de digitação saiu errada uma frase do texto sobre Carlos Fuentes, de autoria de Bella Jozef, publicado ontem na primeira página do Segundo Caderno. Em vez de “Narrador por excelência, o crítico Júlio Ortega comentou que Fuentes é capaz de converter até o Código Civil em romance contemporâneo dos astecas e dos mexicanos do ano 2000. Seus temas (…)”, a frase correta era: “Narrador por excelência
– o crítico Julio Ortega comentou que Fuentes é capaz de converter até o Código Civil em romance – contemporâneo dos astecas e dos mexicanos do ano 2000, seus temas (…)”

Vargas Llosa 1999

Produto: O Globo
Data de Publicação: Sábado 24 Julho 1999
Página: 3
Edição: 1
Editoria: Prosa e Verso
Caderno: Prosa e Verso

Ponte ficcional entre Brasil e América Latina

Bella Jozef

Relançado, ‘A guerra do fim do mundo’ mostra como Llosa reafirma compromisso político ao recriar Canudos

Legenda da foto: MARIO VARGAS Llosa: “Eu ressalto no meu livro a responsabilidade dos intelectuais que favoreceram o massacre. Um equívoco que fez escola”

A guerra do fim do mundo, de Mario Vargas Llosa. Tradução de Remy Gorga, filho. Companhiadas Letras, 744 pàginas. R$ 39

O escritor peruano Mario Vargas Llosa teve a primeira notícia de Canudos após a leitura de “Os sertões”, de Euclides da Cunha, obra de grande impacto na consciência nacional brasileira. Amàlgama de ensaio científico, panfleto e relato literàrio, abriu a Euclides da Cunha as portas da Academia Brasileira de Letras e do Instituto Histórico. Para Sergio Paulo Rouanet, a leitura que Euclides faz do conflito de Canudos, metàfora de uma modernização de fachada, “aproxima-se da dialética do Iluminismo tal como exposto por Adorno, Horkheimer e Benjamin”. Glauber Rocha, que sofreu influência dessa “Bíblia da nacionalidade”, como a denominou Nabuco, caracterizou-a como “épica científica”.

Autor retoma o interesse pelo romance épico

A tensão, a vibração e o dinamismo da linguagem de “Os sertões”
acompanham os fenômenos agônicos versados por essa obra de interpretação e denúncia, que fazem com que a solenidade euclidiana seja diferente de Rui ou a placidez de Nabuco: ela é monumentalidade dramàtica. Nada mais típico de seu estilo hiperbólico que o famoso oxímoro, a contraditória com que nos apresenta a figura forte-débil, atlético-aleijada do sertanejo: “Hércules-Quasímodo”. “Sem Euclides”, afirma Vargas Llosa, “eu nunca teria escrito meu livro”. E sabiamente colocou a seguinte dedicatória: : “A Euclides da Cunha no outro mundo e, neste mundo, a Nélida Piñon”.

Nélida Piñon observa a dimensão mítica do tema de Canudos e refere-se a ele como “o drama que mobilizou a nação brasileira no encerrar do século XIX”, com seu quadro “caótico e múltiplo e o denso enigma que gravita em torno do episódio”(…) um drama que comporta “incontàveis variantes”. E elas não tardaram. Basta reportarmo-nos ao “Romance d’a Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta” (1971), de Ariano Suassuna, epopéia de sonhos e de miragens que pode ser considerado o romance de cavalaria do Nordeste do Brasil, o nordeste mítico e místico de Antonio Conselheiro, das cavalhadas e dos folguedos populares.

Canudos é o protesto do sertanejo e este é o romance desse protesto.
Também João Ubaldo Ribeiro traz-nos reminiscências de Conselheiro no Argemiro de “Vila Real” (1979), cujos antecedentes estão no romance de cavalaria, sublinhando traços medievais do sertão e elementos da literatura de cordel desenvolvida pelos cantores populares nordestinos.

Com “A guerra do fim do mundo”, relançado pela Companhia das Letras, Vargas Llosa retoma seu interesse pelo romance de cunho épico e histórico. O alcance épico deriva do sopro de transfiguração artística com que forjou os protagonistas e as massas do drama de Canudos, num empenho de criação do “romance total”. Parte de documentos históricos, descontrói-os para integrà-los á narração utilizando a obra de Euclides como um documento a mais. Reconstitui o Arraial, descreve a longa campanha militar e as expedições que culminaram na morte de milhares de vidas e o do próprio Conselheiro.

O estilo de Llosa é funcional no manejo da terceira pessoa com variedade de matizes, e sua hàbil técnica elabora uma estrutura de episódios vinculados por oposição, visando a remeter o leitor ao contexto histórico, tornando-o contemporâneo da ação, num esclarecimento simbólico da realidade. Entre os personagens, traçados com nitidez, ressaltam o anarquista Galileo Gali e o jornalista, sem nome, que não é míope por acaso.

História, mito e imaginàrio se conjugam nesse universo literàrio, tecido no plano do estético porém nutrido nas fontes do imediato. Ao inventar situações para construir uma obra de ficção, Llosa enriqueceu um episódio-chave da totalidade histórico-social do continente, que não compreendeu como um episódio isolado. Numa entrevista concedida em Roma ao jornal “Il Tempo”, ilustrou o significado de seu romance: “Eu ressalto no meu livro a responsabilidade dos intelectuais que favoreceram o massacre (…). Tratou-se apenas da fome, da ignorância, da pobreza. Um equívoco que fez escola”. Para ele, “Os sertões”
constituiram uma autocrítica pessoal e nacional.

Uma crônica do encontro entre duas sociedades

A relação entre realidade e obra de arte é a que existe entre o que denominou realidade real e realidade fictícia. Questiona a arte, além de traduzi-la e recrià-la em vàrios níveis, deixando de considerà-la como conseqüência de uma verdade transitória: enraizada em periodo concreto da História imediata. Ao superar as velhas fórmulas do realismo tradicional, entende-o como um ato de rebeldia, uma representação horizontal e vertical do mundo. Com isso, reforça a tradição social da novelística hispano-americana. Levado pela constatação do encontro violento de duas sociedades incomunicàveis em Canudos, Llosa mostra como os preconceitos, a intolerância, os temores e ambições políticas, levados ao extremo, podem conduzir ao fanatismo.
Como intelectual latino-americano, de aguda sensibilidade e consciência das injustiças, confirma o compromisso com sua sociedade e seu tempo. Considera que “na América Latina contemporânea ainda hà Canudos em muitos países”, realizando ambicioso remake (termo elaborado pelo cinema e pelas artes plàsticas) com o que associa o Brasil á América Hispânica, numa integração cultural desejada e em gestação, como sua obra vem comprovar.

BELLA JOZEF é Professor Emérito da UFRJ

Carlos Fuentes 2000

Produto: O Globo
Data de Publicação: Sábado 2 Setembro 2000
Página: 3
Edição: 1
Editoria: Prosa e Verso
Caderno: Prosa e Verso
Crédito: Bella Jozef
Tipo de matéria: Artigo Assinado

A História não-contada do México

Fuentes, em ‘Os anos com Laura Díaz’, questiona ‘verdades’ do passado

Os anos com Laura Díaz, de Carlos Fuentes. Tradução de Carlos Nougué.
Editora Rocco, 470 páginas. R$ 42,50

Carlos Fuentes, um dos expoentes da narrativa contemporânea, soube reelaborar a tradição ocidental através de um novo sentido de História e linguagem. Com extrema acuidade crítica, foi um dos inauguradores dos novos caminhos de representação da realidade, fundindo passado e presente para conferir ao homem latino-americano uma dimensão mais profunda e indagadora da contemporaneidade.

As obras de Carlos Fuentes refletem a corrente geral da narrativa mexicana que se segue à Revolução de 1910: maior inquietação na busca da interioridade do personagem e da situação, além da trama, como forma de entendimento da historicidade e do caráter universal da cultura mexicana. Segundo o escritor, nossa sociedade propõe-nos o falso que é necessário desmascarar. Seu primeiro livro foi um volume de contos, “Los dias enmascarados”, cujo título alude aos cinco dias finais do ano asteca, cinco dias sem nome, durante os quais se interrompia qualquer atividade. São contos que têm como base a sobrevivência do mundo antigo mexicano, no sentido de que nos permitem conhecer a evolução de certos temas e idéias que perduram na obra de Fuentes.

“Os anos com Laura Díaz” pretende interpretar, através da ficção, a vida histórico-política, para dizer o que a História não disse. A História passa a ficção e a realidade é fundada no espaço do romance, crônica monumental da múltipla realidade de nosso século. O discurso da História converte-se em texto literário. A ficção apreende a História, reinventando-a para incorporá-la ao presente e redimensioná-lo. Ao recriar a realidade em benefício de uma visão artística mais complexa, a narrativa é concebida como libertação de todos os níveis do real. A obra constitui-se em História entendida como o entrelaçamento do acontecer com um registro memorialista privilegiado. As “verdades” do passado são questionadas, com afã crítico, independente da evidência documental.

Em “Os anos com Laura Díaz”, a temática amplia-se e a estrutura conforma-se na onisciência do narrador entrecortada pelo emprego da primeira pessoa e de monólogos dos personagens. Ao preencher os vazios da sem-memória, em seu romance de tema histórico, Fuentes realiza uma releitura da Revolução Mexicana, momento-chave para o país, com seu lado utópico, para indicar a inexatidão das versões oficiais e rever criticamente a cultura nacional face aos acontecimentos históricos mundiais do século que se iniciava, como a Guerra Civil espanhola, as brigadas internacionais, o porfiriato, a guerra de 1914, a derrota de Villa, o governo de Carranza, o assassinato de Madero, a queda de Maximiliano, a posse de Miguel Alemán, a depressão americana, o macarthismo, os campos de concentração, havendo alusões às diversas artes e seus cultores.

Escritor desenha amplo painel de nosso século

Eis um amplo painel de nosso século, em que nada escapa ao olhar arguto e atento do narrador. Alguns personagens de outros romances reaparecem, como Artemio Cruz, ou o narrador parodia outros escritores, como Rubén Dario. Como fio condutor da narrativa, a história de Laura Díaz, símbolo da mulher latino-americana em busca de sua verdade, mulher imortalizada na imagem de Rivera e na palavra de Carlos Fuentes.

Laura torna-se amiga de Diego Rivera e Frida Kahlo. Algumas das imagens mais originais e dramáticas do século XX passaram pela cabeça de Frida. Sem fórmulas específicas para seus auto-retratos, ao pintar-se com suas mascotes, esqueletos e macacos, sangrando, chorando e destroçada, transmutou sua dor em obra de arte, de uma franqueza extraordinária, temperada de humor e fantasia, mantendo o observador em inquietante fascínio. O discurso de extrema plasticidade do narrador transmite-nos esse mundo de imagens. Laura Díaz, também personagem de Rivera, conhece “o tempo sem tempo da paixão amorosa” na plenitude do instante.

Neste romance urbano, o espaço da cidade transforma-se metáfora poderosa do aparecimento da modernidade. A cidade do México é captada como objeto de paixão, com seus ruídos, sua topografia específica, as copas ondulantes dos bosques, os tremores de terra. Laura Díaz “aprende a ver os outros com a câmera e com os olhos, como eles mesmos talvez jamais se vissem”. Saiu “a fotografar as cidades perdidas da grande miséria urbana, encontrou-se a si mesma no mesmo ato de fotografar”, registrando com sua câmera todos os momentos da mudança e, principalmente, a revolta estudantil da praça de Tlatelolco em 1968.

Criada pela arte, Laura, persona e personagem, regressa ao passado pois “nossa existência não tem outro sentido senão completar os destinos inacabados”. Solidária e participante, engendrando uma gama de conflitos, a criação de Carlos Fuentes confere existência a uma nova realidade que incorpora a História da contemporaneidade em seus múltiplos aspectos, deixando-nos a certeza de que a arte não reflete a realidade.

Bella Jozef é professora emérita da UFRJ

Dasso Saldivar 2000

Produto: O Globo
Data de Publicação: Sábado 29 Abril 2000
Página: 4
Edição: 1
Editoria: Prosa e Verso
Caderno: Prosa e Verso
Crédito: Bella Jozef
Tipo de matéria: Artigo Assinado

BIENAL DE SÃO PAULO: Autor colombiano tem vida analisada desde a infância

Gabo amava Sófocles e aprendeu a contar loucas histórias com sua avó

Biografia bem documentada ajuda a entender a ficção de García Márquez

Legenda da foto: GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ: vida traduzida pela linguagem de Saldívar Dasso e transformada em história

Gabriel García Márquez, viagem à semente, de Dasso Saldívar. Tradução de Eric Napomuceno. Editora Record, 504 páginas. R$ 52

O que é uma biografia? É forma literária constituída por um núcleo: a trajetória de um sujeito inscrito num espaço e num tempo histórico, para produzir o sentido da diferença dessa individualidade. Assume-se como construção de um sujeito visando a assegurar-lhe uma presença feita de linguagem, isto é, transformar a vida em ficção. Como discurso, tem um estatuto ambíguo e polivalente: nele coexistem e se articulam uma estratégia da referência e da pressuposição, o explícito e o implícito, o sentimento e a opinião; nele se dialetizam a circunstancialidade e a permanência confundindo vida e imaginário, o “romance” de uma existência que se faz literatura. As diferenças entre realidade e ficção transparecem numa espécie de baile de máscaras.

Trabalho de biógrafo amplia visão da obra

A biografia de García Márquez de Dasso Saldívar, iniciada em janeiro de 1973, que chamou de “viagem à semente”, a procura da origem, gênesis, primeira manifestação no tempo, amplia a pesquisa sobre a obra do escritor. Ao iluminar sua perspectiva e as condições de sua produção, fornece à crítica novos elementos de interrogação. Parte da infância de Gabo e chega aos dias de hoje, passando pelos estudos realizados, leituras, influências, amigos, fazendo-nos revivenciar, ver e sentir cenas, odores, modulações, a galeria dos ancestrais, um oscilar entre o possível excesso e a reserva de silêncio, um tempo morto que deixa emergir os sentidos.

A biografia de G.G.M. se inicia em Barrancas, a 19 de setembro de 1908, e não faltam cenas de alta dramaticidade e grande impacto, como à pág. 22, quando seu amigo lhe conta que “seu avô matou meu avô”. O avô Ricardo Márquez Mejía, homem querido e respeitado, matou num desafio Medardo Pacheco Tomero, 19 anos antes do nascimento do escritor.

Ficamos conhecendo seu autor predileto, Sófocles, o mais constante de seus mestres, que lhe veio pelo amor ao teatro desde a infância, e a descoberta das “Mil e uma noites”. As histórias de Scherazade confirmaram o mundo dos contos da avó Tranquilina, de almas penadas e bruxas perambulando pela casa depois das seis da tarde, vizinhos mortos que tossiam e assoviavam a cada instante. Aos contos dos irmãos Grimm, na infância, Julio Verne, Alexandre Dumas e de Salgari, vieram juntar-se Petrarca, Dante, Rubén Dario, Poe, Melville, Claudel, Faulkner, Dos Passos, Capote, Virginia Woolf, Dreiser, Camus, Sartre, Borges, Kafka.

Para esta tarefa monumental, Saldívar valeu-se de entrevistas do escritor, documentos, testemunhos, conversou com familiares e amigos, consultou jornais, entretecendo esses documentos com o discurso ficcional, uma interpretação da vida através da linguagem. Passamos a saber da origens dos bisavós, nascidos na Espanha, conhecemos os cenários e personagens de muitas das histórias que García Márquez nos vem contando ao longo de sua vida.

Vários autores debruçaram-se sobre a obra de García Márquez (Luis Harss, Plinio Apuleyo Mendoza, Cobo-Borda) , mas a presente biografia é, sem dúvida, a mais bem documentada, pois teve a sorte de contar com a participação do próprio biografado e da maioria de seus familiares.
Cada fato é comprovado minuciosamente, o que gera algumas repetições dispensáveis em torno aos mesmos episódios, nada que uma revisão acurada por parte do autor não possa corrigir em próximas edições.

O ano de 1944 é o do aparecimento do primeiro conto de García Márquez, que já publicara vários poemas com o pseudônimo de Javier Garcés.
Trata-se de uma parábola autobiográfica, onde se pode perceber a busca de equilíbrio e da palavra certa, constantes em toda a obra do escritor.

Mistério da criação, no entanto, continua insolúvel

A figura de García Márquez é feita do cruzamento de imagens que a história não pára de construir e deslocar, uma identidade tecida de textos múltiplos que se cruzam e transformam-se no movimento incessante do imaginário cultural. Cada um constrói o seu Gabo. Várias biografias têm procurado reconstituir os fatos de sua vida, interpretando-os e representando-os numa história , mas as contradições mostram que a existência dos fatos depende dos que lhe dão sentido e relatam.

A biografia tenta explicar tudo, salvo o que não poderia: o insondável mistério da criação. Gabo vai buscar no real, para transformá-los, os dados da realidade que reelabora para apresentá-la ao mesmo tempo tão igual e tão transformada. Seus personagens representam a soma de vários outros, como Ursula.García Márquez cresceu e amadureceu alimentando-se da infância, exumando-a para voltar a ela , a pátria de Baudelaire. Todo escritor é apegado a sua infância, “a semente primitiva da memória”. O tempo perdido da infância é recuperado através da procura do passado à medida que a memória localiza um modo perdido da experiência. Esta procura pressupõe uma forma de posse do passado.

Qualquer discurso biográfico será redutor em relação ao escritor colombiano e seu imaginário e insuficiente para traçar o perfil e o discurso de personalidade tão complexa e multifacetada, constituída através da magia do seu dizer que transfigurou e criou experiências e emoções. Uma biografia de Gabo deverá ir além da simples reconstituição de fatos e terá de ser, como o foi esta, a história de sua leitura e da sua escrita.

BELLA JOZEF é ensaísta e Professora Emérita da UFRJ

Julio Cortázar 2000

Produto: O Globo
Data de Publicação: Sábado 12 Fevereiro 2000
Página: 4
Edição: 1
Editoria: Prosa e Verso
Caderno: Prosa e Verso
Crédito: Bella Jozef
Tipo de matéria: Artigo Assinado

O romance que mudou a forma de fazer romances na América Latina

‘O jogo da amarelinha’, livro-mosaico de Cortázar, foi um divisor de águas.

Legenda da foto: JULIO CORTÁZAR: modelo para armar/desarmar e suplantar a vida

O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar. Tradução de Fernando de Castro Ferro. Civilização Brasileira, 646 páginas. R$ 43

Certa ocasião, Carlos Fuentes tocou a campainha na porta da casa de Julio Cortázar, em Paris. Abriu-lhe “um adolescente sardento, imberbe, de cabeleira juvenil e olhos azuis”. Apresentou-se e disse: ” Rapaz, venho ver seu pai”. “Sou eu”, respondeu-lhe Cortázar. Quando o conheci, anos mais tarde, continuava o eterno jovem, altíssimo, magro e barbudo, que gostava de jazz, box e cinema.

“O jogo da amarelinha” (Rayuela, 1963) foi um divisor de águas na produção cortazariana. Tinha o propósito de criar um livro capaz de suplantar a vida ou transformar a nossa existência em uma vasta leitura de todas as combinações da escritura. Neste texto ideal, que teoriza e questiona o seu processo de estruturação, os caminhos são múltiplos e podemos aceder a eles por várias entradas. O narrador procura recuperar os limites do tempo e, para isso, faz um romance desmontável, de divisão formal tríplice, que pode ser lido do capítulo
1 ao 56.

Horácio e Maga, Talita e Traveler: casais de duplos

“Do lado de lá” — do capítulo 1 ao 36 – a vida de Horacio Oliveira, o argentino em Paris, que desconfia das estruturas lingüísticas e sociais e procura seu “kibbutz do desejo”. Os focos de sua existência são a companheira uruguaia, Maga, e o círculo de amigos do “Club da serpente”. A morte do filho de ambos, Rocamadour, leva ao desaparecimento de Maga. Na segunda parte, de 37 a 56, “do lado de cá”, de volta a Buenos Aires, encontra Talita/ Traveler, espécie de duplos de Maga/ Oliveira.

A terceira parte é constituída por uma série de capítulos sobressalentes, de 57 a 155, coleção heterogênea de textos, como o debate entre percepção e representação em relação à narrativa e o pensamento ocidental, além de citações, duplicações e recortes. Estes capítulos são passíveis de serem acrescentados ao primeiro livro seguindo um roteiro apresentado no prefácio. Trata-se de um modelo para armar que se desarma constantemente O narrador sugere ao leitor que invente novos livros trocando a ordem dos capítulos. Dispõe os fragmentos de um romance impossível, dispersa-os e mistura-os. A idéia é a do tempo contíguo: “Há tempos diferentes embora paralelos”. Os artistas que optam por não apoiar-se na circunstância, “estão à margem do tempo superficial de sua época”. Com esta posição, Cortázar foi o precursor da crítica pós-estruturalista, pois, segundo Roland Barthes, “interpretar um texto não é dar-lhe um sentido, é apreciar de que plural é feito”.

Foucault afirmou, certa vez, que “Dom Quixote lê o mundo para demonstrar os livros”. Cortázar tem por objetivo o contrário. Através do personagem Morelli, declara a intenção de fazer um romance “des-escrito”. Para consegui-lo, inventa uma contra-linguagem, para atingir, além das imagens, as puras coordenadas, as constelações de personagens, numa tensão entre as forças de fragmentação e integração de caracteres. É importante assinalar que o propósito não foi meramente experimentalista e formal: Cortázar pretendia modificar o sentido do romance e do ato da criação para conceber um novo leitor.
Este fato conecta-se com a busca do destino transcendental do ser humano. Pelas frestas, sente-se a vertigem da morte, nesta crônica frustrada de um frustrado caminho de perfeição, em um mundo onde não há caminhos nem perfeições.Tanto faz estar do lado de lá, do lado de cá ou em qualquer lado.Todos os lugares são transitórios. Podemos intuir, ainda, nessa obra, o tema da peregrinação inacabada, da viagem interior que revela a procura de um Eldorado (como em Alejo Carpentier), do paraíso patriarcal (Juan Rulfo), de uma identidade mítica ( Miguel Angel Asturias), e que representa um mundo sonhado na Utopia e degradado na epopéia, como a tomada de consciência da decomposição histórica que significa nosso mundo.

Não ao empobrecimento do realismo socialista

Cortázar recusou a literatura do realismo socialista por seu “empobrecimento da noção de realidade em nome de uma temática restrita ao imediato e concreto”. Foi um escritor que se centrou na aventura da vida, abrindo-lhe seus mais secretos recantos. Fomos alimentados e iluminados por sua obra. Deixou-nos, como Fellini, Buñuel e Picasso, uma nova linguagem para ler o mundo, o legado de uma arte que recolhe o melhor da arte e incorpora o que o homem tem de profundamente humano. Sua única medida é o infinito da linguagem. Pois dizia-me rebelar-se contra “determinada linguagem que me parece falsa, bastarda, aplicada a fins não-nobres”.

E apostou no humor, ao lado do fantástico e do imaginário, como forma de conscientização. Considerava-o uma arma central do ser humano que o capacitava para enfrentar o mundo e criar uma “visão em que as coisas deixam de ter suas funções estabelecidas para assumir funções diferentes, inventadas”. Mas ele “brincava a sério”, como afirma Volodia Teitelboim. Depois dele, as situações mais dramáticas perderam
solenidade: seus cronópios encarregaram-se de pôr o mundo de pernas para o ar.

Bella Jozef é professora emérita da UFRJ, autora de “Diálogos oblíquos”

Roberto Arlt 2000

Produto: O Globo
Data de Publicação: Sábado 5 Agosto 2000
Página: 3
Edição: 1
Editoria: Prosa e Verso
Caderno: Prosa e Verso
Crédito: Bella Jozef
Tipo de matéria: Artigo Assinado

Profecia intuída aos excluídos e psicopatas

A prosa despojada do argentino Roberto Arlt demorou a ser reconhecida e foi precursora do romance urbano

Legenda da foto: ROBERTO ARLT: o desencanto dos argentinos na primeira metade do século impregna a obra do autor, que estaria completando cem anos

Os sete loucos e Os lança-chamas, de Roberto Arlt. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. Editora Iluminuras, 412 páginas. R$ 39

Para compreender Roberto Arlt (1900-1942), é fundamental estabelecerem-se algumas coordenadas espaço-temporais da primeira metade do século XX, quando a classe média argentina, com a crise econômica do final do século XIX, se sentiu frustrada em suas esperanças. O fato agravou-se com a Primeira Grande Guerra, que deixou um vazio profundo, segundo constatação do mesmo Arlt. Dois grupos marcaram a época de entre guerras na Argentina: o de Boedo e o de Florida. O sentido realista da História e do homem, a tomada de posição social e política marcam o primeiro. O grupo Florida, de tendência esteticista, ocupava-se mais com o aspecto eminentemente formal da obra de arte.

Roberto Arlt pertenceu ao grupo Boedo. É o primeiro escritor argentino a introduzir a paisagem portenha, os arrabaldes, o “lunfardo”, desmitificando o herói de suas aventuras, mostrando-o como ser de carne e osso. Para isso, manipula certas constantes que passam a ser pontos essenciais de sua cosmovisão. Descobrem-se, em seus romances, as intuições metafísicas mais profundas.

O niilismo do homem conduz à dúvida

Angústia existencialista, sentimento unamuniano trágico da vida, uma amoralidade agressiva, pouco convencional, que desafia leitores e críticos, no ano do centenário de seu nascimento. Na questão essência-existência não toma o rumo da fenomenologia, por sua natureza fortemente intuitiva. O homem, como dualidade corpo-alma, é transitório e seu niilismo o conduz à dúvida, mas há sempre esperança, uma busca de felicidade. Arlt defendia a ética empirista, embora considerasse certas verdades imutáveis, como a justiça. Identifica a literatura como atividade em que o imaginário prevê suas próprias normas de significação, recusando os signos impostos pela realidade.

Arlt teve de esperar um quarto de século para que a crítica se interessasse por suas obras de prosa dura e linguagem despojada, pelo que havia de profético em sua intuição, pela visão segura da estruturação novelística. Sem dúvida, o auge do romance urbano, na atualidade, tem em Arlt um de seus precursores pois ele surgiu quando ainda dominava o romance de cunho regionalista. Arlt, homem da cidade, sonha com a utopia renascentista, a vida do campo, longe das concentrações urbanas. Seus personagens representam a maioria esquecida, angustiada e psicopata da cidade.

Há, entre os personagens de “Os sete loucos” e “Os lança-chamas”
(editados pela Iluminuras num único volume), habitantes da Corte dos milagres, uma recusa irracional da ordem estabelecida. Alguns, como Haffner, crêem que “nada há a fazer”. Nenhum tipo de ação o satisfaz, ao contrário dos demais. O Rufião Melancólico se aborrece, não está “em nenhuma posição”. A rebelião de Ergueta é emocional e caótica.
Procura nas escrituras a confirmação de seus sentimentos de rebeldia.
Para o Buscador de Ouro, a degradação do mundo moderno tem, como causa, a perda do contato com a natureza. O homem substituiu o espaço natural por uma criação artificial e maligna. Sua revolução se articulará em torno a uma volta ao paraíso natural perdido, compatível com o do Astrólogo, porque se reduz à proposição de uma troca de espaço. Pelo contato com o natural, um covarde como Erdosain se converterá em valente.

Os motivos que levam Erdosain a aderir ao programa do Astrólogo têm em comum com os demais personagens o fato de articular-se em torno de uma rebelião puramente irracional. Diante de uma sociedade urbana capitalista, quer destruir a ideologia pequeno-burguesa. O que propõe é um ressurgimento espiritual do homem em termos totalmente abstratos.
De todos os personagens, Erdosain é o que mais pontos de contato tem com a doutrina do Astrólogo. Representa os milhares de homens aos quais seu pensamento se dirige, organizado em torno de Engano, Mistério e Autoridade. Através do uso do Engano e do Mistério, uma minoria seleta ficará revestida de autoridade indiscutível e terá plenos poderes sobre o resto da humanidade.

Em “O lança-chamas”, Arlt discute o mito das democracias e denuncia a violência a que o homem se vê submetido. Mas não se trata de devolver ao ser humano a felicidade perdida: o que Arlt deseja é criar condições para levar a cabo em grau máximo a exploração do homem que não pertença a uma reduzida elite e mergulhá-lo na mais total alienação, para sempre. “Criaremos deuses supercivilizados”, diz o Astrólogo. Pretende alcançar o poder, convertendo-se em chefe de um mundo tão degradado como o que pretende destruir.

A cultura da nova sociedade se reduzirá à tecnologia. Para sua preparação, treinar-se-ão diversas formas de opressão e violência.
Utilizando a mentira metafísica, as massas serão seduzidas com promessas de felicidade. Uma vez atraídas pelo Engano, serão exploradas impiedosamente. O personagem arltiano dirige-se ao pequeno-burguês alienado: ataca valores morais estabelecidos, deixando intacta a alienação. É rebeldia que conduz ao isolamento em que se fortificam os enfoques individualistas sem nenhuma forma de solidariedade com os demais seres.

Roberto Arlt não planejava rigorosamente seus romances e, quanto tentava fazê-lo, afastava-se do projetado: “A única coisa que sei é que o personagem se forma no subconsciente, como a criança no ventre da mulher”. Em “Os sete loucos”, escolheu três dias chaves, mas, à medida que ia avançando, deu-se conta de que muitas possibilidades ficavam de fora. Decidiu acrescentar os quatro dias de “Os lança-chamas” onde se amplia o problema de Erdosain (e sua estranha necessidade de humilhação), completam-se os antecedentes dos outros personagens, inclui-se o episódio de Elsa e sua tragédia matrimonial com Erdosain, os antecedentes de Haffner e Bromberg e o desenvolvimento do caráter do Astrólogo.

A mudança que sofrem as duas partes do romance é o que existe entre o individual – Erdosain – e o coletivo – a sociedade secreta e os habitantes da cidade. Há um constante desdobramento entre Erdosain e o outro, o fantasma. É produto da sociedade urbana que o humilhou desde a infância, primeiro o pai e depois os mestres e companheiros da escola. Quando se torna homem, a humilhação é uma segunda natureza.

O destino dos personagens está previamente traçado

“Os sete loucos” estrutura-se como uma confissão que o protagonista faz ao narrador que, ao final, converte-se em personagem. Com a razão social bem clara, volta-se para o individual, para explicar a necessidade de sofrimento de Erdosain. Poucas horas antes do fingido assassinato de Barsut, Erdosain revela a Hipólita um crime, cometido por pura curiosidade. Hipólita escandaliza-se e o chama de “monstro”.
Mas por que só no final nos fala Erdosain do crime? Em “Os lança-chamas”, as referências são muitas. Quem escreve é um narrador onisciente depois dos acontecimentos, utilizando um material deixado pelos personagens. Ele nada havia insinuado a respeito; ao contrário, Erdosain aparece como um homem em busca da pureza.

Todos os destinos estão previamente traçados embora, até o último momento, os personagens o ignorem: “De que modo deve o homem viver para ser feliz ou melhor, de que modo devia viver eu para ser completamente ditoso”. Nem o narrador nem o autor o souberam.

BELLA JOZEF é professora emérita da UFRJ, autora de “Diálogos oblíquos”.

Vargas Llosa 2000

Produto: O Globo
Data de Publicação: Sábado 25 Novembro 2000
Página: 3
Edição: 1
Editoria: Prosa e Verso
Caderno: Prosa e Verso
Crédito: Bella Jozef
Tipo de matéria: Artigo Assinado

A bem-sucedida volta ao romance histórico

Mario Vargas Llosa mostra sua arte narrativa em grande forma no livro ‘A festa do bode’, sobre o general Trujillo

Legenda da foto: VARGAS LLOSA: narrativa costurada em torno das lembranças de sua personagem Urania, quando esta retorna à terra natal, Santo Domingo

A festa do bode, de Mario Vargas Llosa.Tradução de Wladir Dupont.
Editora Mandarim, 456 páginas. R$ 37

A arte de narrar atinge um ponto alto nessa obra de Mario Vargas Llosa, “A festa do bode”, em que retoma seu interesse pelo romance de cunho histórico, afastando-se dos esquematismos e construindo personagens pelo manejo de diversos dados. O romance problematiza a experiência e o discurso histórico para pensá-los. Não é a primeira incursão de Vargas Llosa no gênero: já havia publicado “Conversa na catedral” e “A guerra do fim do mundo”, sobre a guerra de Canudos.

A personagem Urania, num jogo entre presente e passado, volta a Santo Domingo, sua cidade natal, para relembrar fatos da história dominicana, especialmente a época da ditadura de Trujillo, apelidado “O Bode”. Relembra episódios da infância e da adolescência, trazidos pela memória, diante do pai inválido, prostrado numa cadeira de rodas.
Ao mesmo tempo, questiona a participação do pai durante a época da ditadura de Trujillo, fazendo-nos voltar à década de 60, quando a capital dominicana se chamava Ciudad Trujillo.

Narrador disseca asações de Trujillo

A narração, que avança e retrocede a determinados pontos, resulta destruidora do tempo cronológico, ao reiterar alguns elementos. O narrador – que usa a terceira pessoa e também usa a segunda, em conversa com o personagem – descreve, com fortes tintas, o comportamento de um homem concreto, o ditador, proporcionando amplidão a qualquer dos atos e expressões dessa vida particular, que persegue e destrói a quem se lhe opõe, cegado pelo poder que o devorou. Segue-se a conspiração para derrubá-lo e seu assassinato. O déspota paga com a vida a desordem humana que impõe, a incapacidade para a amizade, a impotência diante das mulheres, a implacável crueldade. É um passado recente que continua vivo, dentro do qual nos movemos para compreender seus horrores e o sangue que ainda não secou.

A visão do narrador não é de fora: ele entra na intimidade do ditador e instala-se na consciência do personagem, ocupando o centro de onde se exerce o poder e vê o universo circundante através de suas operações concretas. Descobre o motivo ignorado das ações do ditador, as benéficas e as perversas, desenha os mecanismos de sua ilógica continuidade histórica, num anacrônico sistema de governo que corrompe as pessoas a seu redor. Colocando-se na consciência do personagem que o exerce, apesar dos sucessivos colaboradores colaterais, o romance não deixa lugar aos opositores do regime, os eventuais instauradores dos valores humanos.

A explicação da aventura do poder em mãos do ditador Trujillo recoloca-o nas coordenadas de sua própria sociedade. Percebemos o poder através da figura que o exerce, através da pessoa que o conquistou e a ele se aferra até ser nada mais do que isso, poder.
Como o ditador de “O outono do patriarca”, de García Márquez, é-nos dito como conduz à solidão e à falta de amor.

Em seu processo de criação, o imaginário apresenta-se com todas as possíveis formas narrativas, desde o naturalismo truculento e o expressionismo, para reinterpretar um episódio da História da América Latina. Embora possamos aproximar-nos de uma biografia romanceada, pois estamos ante um personagem histórico real, o general Trujillo, uma época cronologicamente determinada e reconstruída, nada corresponde àquele modelo pois o material histórico e biográfico foi submetido a uma concepção estritamente novelesca e plasmado livremente de acordo com as necessidades internas da construção artística. Os diversos episódios reais foram rearticulados com total liberdade em vários pontos de vista.

Uma vez mais, Vargas Llosa mostra sua capacidade em reviver o gênero histórico, restaurando, dentro de nova linguagem, algumas de suas características do passado, a capacidade de construir um romance totalmente em torno de personagens, como nas brilhantes épocas de Stendhal e Flaubert. O personagem, como produto de uma sociedade que nele se recupera simbolicamente, foi a peça constitutiva da grande narrativa do século XIX europeu. Revive com esplendor nesta criação nascida na periferia da cultura européia. A opção de Vargas Llosa foi diferente de um Alejo Carpentier ou de um Roa Bastos porque reconhece as condições específicas da área cultural de Santo Domingo, que nutre sua obra, e a circunstância histórica a partir da qual formula sua mensagem, constituindo-se em testemunho chave sobre a cultura latino-americana.

Vemos a interpenetração da veracidade histórica, baseada em um saber sustentado com material documental e ficcionalidade reinterpretativa.
Ocorre a acumulação de material histórico, jornais (como já havia feito para obras anteriores), aliado a um conhecimento minucioso da cidade.

Leitura convoca outros ditadores latino-americanos

A ficção de Vargas Llosa vai buscar sua configuração numa realidade histórica, política e cultural concreta. Comprovamos a estreita relação entre o relato histórico e o ficcional, já que o historiador, como o romancista, necessita fazer uso de sua imaginação para dar um sentido ao material documental. A História é a narração de feitos reais e a ficção, de feitos imaginários. Mas ambos os modos discursivos são relatos. O discurso histórico organiza, seleciona e interpreta os fatos. Assim, tanto a ficção narrativa quanto a histórica são discursos que sustentam uma ilusão de referencialidade.
O que se quer afirmar é a índole interpretativa da História. A famosa “objetividade dos fatos” é sempre uma interpretação. Entretanto, apropriar-se de personagens históricos não tem o objetivo de rivalizar com a História, a ficção deseja escrever uma história diferente, oferecendo outra versão.

No romance histórico contemporâneo, como “A festa do bode”, o escritor reconhece os fatos e os insere em sua escrita para questioná-los.
Outros muitos ditadores podem ser convocados por estas páginas, comportamentos que vários povos da América Latina conheceram e padeceram. Ao trabalhar diretamente com a matéria histórica dos anos recentes, Vargas Llosa realiza nova leitura de nossa contemporaneidade.

BELLA JOZEF é professora emérita de Literatura da UFRJ

Adolfo Bioy Casares 2001

Produto: O Globo
Data de Publicação: Sábado 29 Setembro 2001
Página: 2
Edição: 1
Editoria: Prosa e Verso
Caderno: Prosa e Verso
Crédito: Bella Jozef
Tipo de matéria: Artigo Assinado

O homem da ilha

Uma das vozes mais expressivas da literatura hispano-americana, Adolfo Bioy Casares nasceu a 15 de setembro de 1914 e faleceu a 8 de março de 1999 em Buenos Aires. Aos 11 anos, escreve seu primeiro romance “Iris y Margarita”, plagiando “Petit Bob” de Gyp, para uma prima pela qual estava apaixonado. Em 1932 conhece em casa de Victoria aquele que se tornará seu amigo e colaborador, Jorge Luis Borges. Com ele escreveu roteiros de cinema, artigos e prólogos, contos policiais sob os pseudônimos comuns e alternativos de Bustos Domecq e Suárez Lynch, criando um curioso detetive, Dom Isidro Parodi.

Juntos, dirigiram uma coleção de livros policiais com o nome de “O sétimo círculo”, compilaram antologias e anotaram obras clássicas.

Fundaram uma revista, a “Destiempo”, que só durou três números.

Segundo me declarou em uma conversa, “Borges foi a primeira pessoa que conheci, para quem nada era mais importante que a literatura”. Entre as melhores recordações de sua vida, dizia, estavam as noites em que ele e Borges escolheram textos para a “Antologia fantástica”, publicada em conjunto com Silvina Ocampo, que o convenceu a dedicar-se exclusivamente a escrever e com a qual se casou em 1940. Nesse mesmo ano, publicou “A invenção de Morel”, hoje um clássico da literatura contemporânea. Dedicada a Borges e saudada por ele como de “argumento admirável” e “trama perfeita”, a pequena obra-prima de Bioy Casares reúne as características essenciais de sua ficção posterior.

Afastando-se da linha tradicional argentina, essencialmente realista, possibilitou nova vertente sofisticada, rica em sugestões.

O imaginário incorpora-se como elemento estruturante na nova visão do universo. O mar atravessado pelo fugitivo para ir à ilha divide o mundo cotidiano do universo dos sonhos. O narrador anônimo quer, como Édipo, decifrar um enigma. O protagonista afasta-se da sociedade e ingressa dentro de sua psique, quando se retira simbolicamente do mundo da contingência para encerrar-se com seu texto. “A invenção de Morel” pode ser vista como o símbolo de toda criação.

Bioy Casares faz da ilha um universo fechado e um campo de experimentação dos limites humanos. Segundo Sábato, as ilhas são “isoladores filosóficos de dois universos, um real e outro possível”.
Considerando o romance psicológico deficiente quanto ao rigor da construção e desordenado pelo desejo de verossimilhança, Bioy Casares optou pela literatura fantástica, rica de argumento, caracterizada pelo rigor da composição, sobriedade na exposição e unidade de ação. A obra é configurada como um sintagma acabado, cujo sentido nasce e morre nela mesmo, pois Bioy não se propõe uma transcrição da realidade.

O mundo é decifrado por ele como uma ilusão de tempo e espaço:
obriga-nos a reexaminar as fronteiras de “realidade” e “aparência”. O universo assim proposto é um sistema de relações perpetuamente móveis, perpetuamente aberto a combinações futuras. Uma ordem na qual seremos donos de escolher com liberdade nosso próprio modo de desencontrar-nos e morrer.

BELLA JOZEF é professor emérito da UFRJ e autora de “Diálogos oblíquos”

Camilo José Cela 2001

Produto: O Globo
Data de Publicação: Sábado 16 Junho 2001
Página: 3
Edição: 1
Editoria: Prosa e Verso
Caderno: Prosa e Verso
Crédito: Bella Josef
Tipo de matéria: Artigo Assinado

A saga telúrica do pobre homem moderno

Em ‘Madeira de lei’, Camilo José Cela segue com trilogia sobre a triste realidade espanhola após a Guerra Civil

Legenda da foto: O NOBEL CAMILO José Cela: os vivos coabitando com os mortos na memória coletiva dos sem história

Madeira de lei, de Camilo Jose Cela. Tradução de Mario Pontes. Editora Bertrand Brasil, 252 páginas. R$ 33

Laureado com o Prêmio Nobel (1989) e o Prêmio Planeta, Camilo José Cela, natural da Galizia, é um dos maiores expoentes da nova ficção da Espanha. A atribuição do Prêmio Nobel a Cela pretendeu, segundo a Academia Sueca, recompensar a figura mais destacada da renovação literária da Espanha do pós-guerra, reconhecer alguém que retratou as feridas da Guerra Civil Espanhola e insurgiu-se contra a repressão representada pelo franquismo. O texto do Nobel ainda afirma que Cela foi premiado “pela riqueza e o poder expressivo de sua prosa que encarna, com controlada compaixão, uma visão provocadora da angústia humana”.

Estreou com uma obra-prima, “La familia de Pascual Duarte”, de linguagem elaborada, com termos de raiz popular, que fez questão de conservar. O êxito foi explicado pelo próprio autor, dizendo que “chamava as coisas pelos seus nomes”.

Primeiras vivências foram ligadas ao “tremendismo”

Os anos 40, quando a ficção espanhola ainda estava sob a égide de Pio Baroja e Galdós, não eram propícios ao experimentalismo. Entretanto, a Guerra Civil recente, impossível de ser esquecida, ensejou uma “sistemática representação de fatos desagradáveis e até repulsivos”, a que se deu o nome de “tremendismo”, ou seja, o exagero proposital da realidade. Nesse momento, o caminho natural era a narrativa de cunho objetivo. As primeiras vivências de Camilo José Cela ocorreram nesse cruel contexto.

A tendência ao realismo exerce-se sobre materiais inventados. Um irônico desencanto da objetividade, comentários irônicos, por vezes piedosos, como se vê na obra “Madeira de lei”, fazem com que ela seja matizada de outros elementos. O narrador deixa de guardar a impassibilidade naturalista, apesar de sua afirmação – depois de ter citado Émile Zola ou dona Emilia Pardo Bazán como modelos – que o romance “agora não é mais como antes, agora as pessoas descobriram que o romance é um reflexo da vida e o único desenlace da vida é a morte”.

A trilogia de que faz parte “Madeira de lei” iniciou-se com “La colmena”, retrato de uma triste realidade do pós-Guerra Civil. Romance onipotente e onisciente, manipula seres e situações, fruto da observação das formas cotidianas madrilenses.

Em “Madeira de lei”, saga de um náufrago ou do “pobre homem moderno”, Cela selecionou as realidades sociais tanto coletivas como individuais, motivadas por certo sentimentalismo em relação às “pobre gentes”, de que recolhe atos e palavras.

Mestre na apresentação de personagens, o narrador faz cada um mover-se pelos mesmos motivos, mas todos são individualizados e singulares. A ação romanesca afeta grande número de tipos regionais, sem destaque de um protagonista (o próprio autor insere-se várias vezes na narrativa).
O mundo questionado ficcionalmente na busca de uma identidade comunitária não apaga o “eu” em nome da redenção coletiva. A oralidade popular integra-se ao discurso do narrador que com ela dialoga criativamente, acrescentando a voz cultural do “outro” social. No jogo das perguntas-respostas observamos uma tentativa de aproximação de causa e efeito.

O ritmo narrativo é sublinhado pelas repetições constantes, construções sintáticas paralelistas. Insiste em dizer, repetir o que foi anteriormente dito, assumindo o discurso a forma do duplo, como recorrência persuasiva da fala. A multiplicidade de fragmentos narrativos centra-se em pessoas e objetos. Com um estilo denso e experimental, as frases prolongam-se, sensuais, prescindindo da pontuação . A ausência de pontuação confirma as relações de exterioridade que a escrita mantém com a língua falada. A linguagem ricamente expressiva insere palavras em galego e latim.

Os objetos são designados pelo nome mais típico e popular e o vocabulário apresenta-se peculiar e vivo, sem complicados processos intelectuais.

Paralelamente aos episódios do metafórico mar (“o mar sempre permanece e não sai de onde está, o mar se balança em cima de si mesmo sem contudo sair de suas bodas, o mar não viaja, o mar não vai e vem, o mar sempre vem, zás, zás, zás, zás, zás, zás, como a velhice dos homens e dos animais”), os vivos coabitam com os mortos nessa memória coletiva dos que nunca puderam escrever sua História. Ali, encontra-se Finisterra,”o último sorriso do caos humano assomando para o infinito”, o fim do mundo para os romanos, o território além da morte e o espaço dos náufragos desaparecidos e afogados, acompanhados de sacristãos pecadores, marinheiros, sereias, soldados, suicidas e curandeiras. Afirmando que “com os mortos devemos ser compassivos mas não condescendentes”, Camilo José Cela leva-nos por uma Galizia recriada com humor e amor.

Experimentalismo, sem romper com a tradição

A parte mais importante da obra de Cela, além do experimentalismo que tanto o seduz, consiste no elo com a tradição ibérica do romance: é, de certo modo, continuador dos grandes prosadores de 98, reunindo heranças diversas a que acrescentou novos aspectos. Universalizou o regional, em íntimo contato com sua terra, seu povo e a condição humana. Pode-se considerá-lo intérprete da realidade telúrica, anímica e social da Espanha e dizer que a história do romance espanhol do pós-guerra inicia-se a partir da revelação de Camilo José Cela, renovador da estética tradicional.

BELLA JOZEF é professora emérita da UFRJ, autora dos “Diálogos oblíquos”.

 

Margo Glantz 2002

Produto: O Globo
Data de Publicação: Sábado 12 Outubro 2002
Página: 4
Edição: 1
Editoria: Prosa e Verso
Caderno: Prosa e Verso
Crédito: Bella Jozef
Tipo de matéria: Artigo Assinado

Em busca do significado da escrita a partir de uma pesquisa sobre monjas

Em ‘Aparições’, a mexicana Margo Glantz fala do profano e do sagrado

Legenda da foto: MARGO GLANTZ: potencial subversivo com novo discurso, além da rebeldia

Aparições, de Margo Glantz. Editoras Rios Ambiciosos/Autêntica, 112 páginas. R$ 20

A escrita da mulher na América Hispânica, como um discurso de caráter híbrido, funde seu status documental, sua natureza fictícia e seu caráter cultural a partir do modelo de representação de um sujeito feminino em um corpo-texto de implicações ideológicas. O discurso canônico masculino opõe-se ao contracultural e subversivo feminino.

Até o século XX, o confinamento das mulheres ao âmbito fechado da casa, colocadas nas margens da cultura masculina, determinou a tendência das poucas que chegavam a articular sua vocação latente em um livro a falar da paixão amorosa e das relações humanas dentro do espaço doméstico.

A história de Eros na literatura registra a contingência de mulheres e homens em relacionamento amoroso, condicionado a regras sociais de cada época. No Olimpo homérico, a mulher, musa inspiradora, foi considerada o símbolo da maternidade. O cristianismo patriarcal, ao condenar as práticas telúricas, fez da mulher a encarnação do pecado.
Eros foi banido da convivência social e até sujeito às leis da Inquisição. Ao mudarem os ventos de direção, Eros reintegrou-se. A revolução mental do século XVIII racionalizou os instintos. O surrealismo reabilitou e regenerou o Eros mutilado pela divisão anjo-demônio, abrindo à literatura a “via do amor sem culpa”, segundo a escritora Natália Correia.

Prevalece a busca pelo significado de escrever

Essas reflexões se devem à reedição em espanhol e à primeira em português de “Aparições”, da escritora mexicana Margo Glantz, jornalista e professora emérita da Universidad Autónoma de México, doutora em Letras pela Sorbonne e membro da Academia Mexicana de la Lengua, em que sucedeu a Juan Rulfo e José Gorostiza.

Resultado de uma pesquisa sobre as monjas do século XVII, o romance “Aparições” é breve porém complexo. A narração, em suas diferentes manifestações, incorpora uma combinação de elementos, os diferentes níveis narrativos, as múltiplas vozes que saem dos personagens, em sua forma objetiva ou subjetiva. Nela prevalece a busca pelo significado de escrever. A narradora, o personagem que escreve, questiona e revela o processo de criação do texto. Sua voz, a partir da fonte de enunciação, é testemunha, crítica, observadora e co-autora: “A escrita e a sexualidade se exercem sempre em espaços privados e, por isso mesmo, suscetíveis de violação, espaços secretos, sim, espaços onde se corre um risco mortal”.

Descreve também algumas outras formas de escrita, em diálogo com Pasolini, Bataille, Barthes, Carlo Guinzburg, entre outros. O processo de textualização, assim como a descrição do erotismo e da sensualidade em suas diversas manifestações, aponta o desejo de romper códigos sociais, culturais e sexuais ao entregar-se à paixão da escrita, que levou a narradora a romper tabus e convenções. Amplia as fronteiras do gênero e o alcance de registro da experiência feminina transcrita e mostra como as contradições se internalizam e se resolvem em um texto escrito por uma mulher, sujeito mediador do conhecimento social e dos discursos culturais que a rodeiam.

Obra revela-se como uma transgressão criadora

Segundo Monica Mansour, “Aparições” conta duas histórias paralelas, uma profana e outra sagrada. A primeira tem a ver com as relações entre uma mulher, seu amante e sua filha. A segunda, com duas monjas que vêem Cristo e dom Manuel, seu confessor, como seu esposo: são mulheres atormentadas pela auto-tortura, que utilizavam o próprio corpo para operações de ascetismo, para produzir um estado anímico, a relação com Deus. Em contato com ambas está a história amorosa da mulher que narra e a relação que estabelece com os personagens que criou.

De acordo com Margo Glantz, a literatura erótica feita por mulheres costuma ser erroneamente apartada do resto da produção narrativa. O erotismo e a sexualidade foram terrivelmente reprimidos no século XVII e, ao mesmo tempo, muito exaltados na linguagem e na iconografia da época. “Esta literatura”, diz a autora, “relaciona-se com uma tradição oriental, focalizada no corpo, embora em meu caso tenha a ver também com uma mística em que este é vencido pelo desejo de comunhão com Deus”.

Quando uma mulher escreve, sua escrita é implícita ou explicitamente contestadora, com um potencial subversivo. No caso de Margo Glantz, é uma interrogação e revelação do que pode ser uma transgressão criadora. Em seu ato questionador, abre um discurso novo que vai além do próprio discurso rebelde. Desestabiliza, a partir das margens, perspectivas hegemônicas no processo de constituição de um sujeito feminino e na construção cultural da mulher.

“- PEÇO-TE, PAI, EM NOME DE

tua preocupação (…), que olhes por minha salvação, não deixes que tua filha permaneça tanto tempo exposta às sereias do mundo. Se eu tivesse sido prometida a um esposo mortal que habitasse em terras longínquas, nunca mais terias me visto. Indigna-te, porém, que simples paredes nos separem em minha ânsia de unir-me a um esposo celestial.
Por que me reténs contra minha vontade? Por que invejas uma pequena cela e uma humilde mesa na família de Cristo?Escrevo, agora que saí desse cerco de palavras cortadas (…), uma densidade, seu verdadeiro registro, uma altura e uma cor”.

Trecho de ‘Aparições’

BELLA JOZEF é professora emérita de literatura da UFRJ

Oswald de Andrade 2003

Produto: O Globo
Data de Publicação: Sábado 14 Junho 2003
Página: 2
Edição: 1
Editoria: Prosa e Verso
Caderno: Prosa e Verso
Crédito: Bella Jozef
Tipo de matéria: Crítica

Busca da rebelião estética e pessoal

Memórias de Oswald são testemunho da ‘belle époque’ de uma geração

Um homem sem profissão, de Oswald de Andrade. Editora Globo, 236 páginas. R$ 24,50

Dotado de personalidade irrequieta e inventiva, apesar das atitudes contraditórias e posturas radicais assumidas ao longo da vida, Oswald de Andrade sempre buscou uma nova dimensão para a arte. Com o modernismo, liderou um movimento fundamental de reavaliação do país, pensou o Brasil como um todo e propugnou pela modernização da cultura.
Oswald chefiou a preparação do movimento, clamando pela ruptura com a tradição européia por meio da rebelião estética. Ao encontrar-se com Mario de Andrade, apresenta-o como “meu poeta futurista”. Lançou os movimentos “Pau-Brasil” (1924) e “Antropofágico” (1928).

Aos 22 anos, em viagem à Europa pela primeira vez, travou contato com fontes inovadoras, como o cubismo e o futurismo ítalo-francês e conheceu mais profundamente as vanguardas surrealistas francesas.
Entre 22 a 29, lá retornou diversas vezes.

Nos anos que antecederam o golpe de Estado de 1937, participou da luta operária e antifascista. Faleceu em meio ao esquecimento, mas nos anos
60 sua obra despertou novamente a atenção, principalmente com a encenação de “O rei da vela” e a revisão concretista.

Suas vida e obra são irmãs gêmeas, como afirma seu filho Rudá: “Creio que a obra de Oswald não pode ser desvinculada de sua vida”. Sua poesia, em que entram o humor e o lirismo, a concisão e a fala popular, o forte apelo visual, a associação inusitada de idéias, “cria ou insinua quase todos os temas com que iriam lidar futuros poetas brasileiros”, disse Vinicius de Morais.

Textos inéditos e prefácios de Candido e Pignatari

A procura incançável e a inteligência curiosa e sensível revelam-se na rápida evolução de sua ficção. Utilizou uma prosa crepuscular fin de siãcle, de momentos menos felizes, na “Trilogia do exílio”; evoluiu para a prosa parodística e cubista dos romances de invenção, “Memórias sentimentais de João Miramar” e “Serafim Ponte Grande”, e passou ao romance de tese representado por “Marco Zero”, espécie de romance mural, que representa o socialismo utópico. Ficou inacabado, assim como suas memórias, intituladas “Um homem sem profissão” (1954).
Primeiro volume das “Obras completas”, apresenta cinco textos inéditos, além de prefácio de Antonio Candido e Decio Pignatari.

A história da feitura dessas memórias é bastante curiosa. Segundo declaração de Oswald no livro, “Antonio Candido diz que uma literatura só adquire maioridade com memórias, cartas e documentos pessoais e me fez jurar que tentarei escrever já este diário confessional”. Narra os acontecimentos vividos até o início da carreira jornalística. Ainda tentaria escrever o segundo volume, “O salão e a selva”, onde incluiria a preparação da Semana de Arte Moderna de 22.

Talvez influenciado pelo “Journal” dos irmãos Goncourt, escreveu, com amigos, de maio de 1918 a setembro de 1919, “O perfeito cozinheiro das almas deste mundo” em caderno de 200 páginas, diário dos freqüentadores da garçonniãre que Oswald, mestre na arte de descobrir e reunir pessoas de talento, manteve na rua Libero Badaró, em São Paulo. Contém pensamentos, pilhérias, alusões a fatos da guerra, livros, recortes de jornais, flores murchas. Os colaboradores usavam pseudônimos ou apelidos. Entre eles, Monteiro Lobato, Menotti del Pichia, Leo Vaz, Vicente Rao. Nas suas “Memórias”, Oswald transcreve várias páginas e revela alguns dos pseudônimos.

As memórias de Oswald podem ser consideradas o testemunho da belle époque em que uma geração se formou e, no tocante ao autor modernista, “os anos de aprendizagem não só literária e artística mas da vida ela mesma”, segundo Mario da Silva Brito.

A busca da consciência de si, em narrativa autobiográfica

Num incessante diálogo entre o passado e o presente, analisa seu percurso existencial e busca a consciência de si, apresentando uma narrativa de cunho autobiográfico. É livre para contaminar a narrativa de sua vida com os acontecimentos de que foi testemunha e datar os momentos de sua redação.

Haverá fidelidade na reminiscência? Por mais duvidosos que sejam os fatos relatados, a escrita dilui os limites entre discurso ficcional e testemunhal (memorialista e autobiográfico): ambos constituem-se em representação, na vacilação entre o que é da ordem dos fatos objetivos e o que pertence ao domínio subjetivo. Como documento e invenção da realidade, faz-nos perceber que seu ser é ser outros.

BELLA JOZEF é professora emérita da UFRJ, autora da “História da literatura hispano-americana”

Legenda da foto: MARIA ANTONIETA E OSWALD na lua-de-mel, em 43, em Poços de Caldas

Pablo Neruda 2003

Produto: O Globo
Data de Publicação: Sábado 22 Fevereiro 2003
Página: 3
Edição: 1
Editoria: Prosa e Verso
Caderno: Prosa e Verso
Crédito: Bella Jozef
Tipo de matéria: Artigo Assinado

Pablo Neruda, memória poética da América, suas luzes, seus punhais

O poeta telúrico, libertário e sensual retorna com força nos 30 anos de sua morte

Canto geral, de Pablo Neruda. Tradução de Paulo Mendes Campos.
Bertrand Brasil, 602 páginas. R$ 52

Para nascer nasci, de Pablo Neruda. Tradução de Rolando Roque da Silva. Difel, 420 páginas. R$ 49

Ainda, de Pablo Neruda. Tradução de Olga Savary. Editora José Olympio,
64 páginas. R$ 16

Prólogos, de Pablo Neruda. Seleção de Arturo Infante Reñasco. Tradução de Thiago de Mello. Bertrand Brasil, 192 páginas. R$ 25,50

Naquela tarde de julho do ano de 1945, Neftalí Ricardo Eliecer Reyes de Basoalto (pseudônimo Pablo Neruda) recitou, com sua voz rouca, pausada e lenta, em tom solene, diante de Vinicius de Morais e Manuel Bandeira, no apartamento deste, no Rio de Janeiro, trechos de “Alturas de Machu Picchu”, de onde voltara entusiasmado, viagem que ressoou em ecos homéricos, como um rito de iniciação órfica. Na mesma tarde, seria recebido, em sessão solene, na Academia Brasileira de Letras.

Esses versos constituíram a segunda parte e matriz geradora do “Canto geral”, uma das obras capitais do universo nerudiano. Consta de 15 cantos: é o livro que considerava “mais fervente e mais vasto”, “possivelmente o mais poético de meus livros”. (…) “nele há sombra e luz ao mesmo tempo, porque eu me propunha abarcar o espaço maior em que se movem, criam, trabalham e perecem as vidas e os povos”.

A mitificação da história de um continente violado.

Caracteriza-se pela mitificação do universo de seres que o habitam, evocado em uma multiplicidade de dimensões que incluem a História, a geografia, hidrografia, sociologia, ornitologia, botânica e autobiografia, um livro que lê a América e os americanos, com a intenção de indagar suas raízes mais profundas, sem limitações temporais e considerando a história como constituída de ciclos.

Neruda toma a decisão de narrar/cantar o recomeço de tudo, a decisão de fazer “tabula rasa”, no dizer de Cortázar, para provar que a América está fora do tempo histórico europeu. Parte do caos original, da época pré-colombiana, evoca o continente ainda sem nome, e mergulha em suas raízes americanas,”natureza apreendida em sua essência e em suas dimensões cósmicas”.

A primeira parte, dedicada à invocação da América antes da América, ainda não visitada pela palavra (“sem nome”), é a da vegetação, dos metais e dos rios personificados. Neruda assume o compromisso de cantar o homem americano, em sua luta reivindicatória pela liberdade que alimenta a invencível esperança. O homem alienado é o foco central do discurso do poema. Na parte III, em ordem cronológica, surgem os conquistadores (comparados aos chacais) e os libertadores (“a luz veio apesar dos punhais”). O opróbrio da Conquista constitui exemplo de uma força poética que se rebela ante a História. Nesses poemas telúricos, quase pagãos, de postura profética (por vezes rigidamente militante), a história da América nasce com as coisas, é concebida como a presença de dois mundos antagônicos coexistentes, o do bem e o do mal. Neruda recria a saudade de um passado como sinônimo de plenitude, exalta um espaço virginal e uma épica de libertação através de tudo o que foi considerado opressão e injustiça na história latino-americana.

O vasto poema pode ser comparado aos murais mexicanos (a cuja influência não se furtou). Publicado em 1950 (duas edições no México – ilustradas por Siqueiros, Orozco e Rivera – e duas edições clandestinas no Chile), o ponto de partida foi a Guerra Civil espanhola que lhe despertou o sentido de engajamento e cimentou seu humanismo.

Digamos com Machado de Assis: “Cada tempo tem sua Ilíada. As várias Ilíadas formam a epopéia do espírito humano”. “Canto geral” é a epopéia da América, a ressonância do mundo exterior num poeta de dimensão inesperada, cujo dizer é pessoal e amplo. Nesses textos de torrente verbal metafórica e analógica, o amor do cosmos, o da mulher e o da sociedade são as formas pelas quais seu imaginário se comunica e se compromete com o mundo, dos tons profundos da solidão aos épicos da solidariedade, testemunho das contradições de seu tempo americano.
Foi criado sob circunstâncias históricas complexas, uma época em que ocorreram o surgimento do nazismo e os horrores da Segunda Guerra.
Pablo Neruda escreve o “Canto geral” entre as esperanças do pós-guerra e o desencantamento da Guerra Fria, no momento das grandes utopias em que a União Soviética representava a materialização do ideal revolucionário. Seu esforço é o de dar realidade à poesia dentro do mundo, pela incorporação do indivíduo à sociedade e o descobrimento de que tem uma tarefa a cumprir dentro dela.

Em 28 poemas, alegria em “compartilhar cantando”

Um dos últimos volumes publicados em vida, “Ainda” reitera em seus 28 poemas a felicidade do poeta de “compartilhar cantando” as coisas que nomeia e a absorção física do universo. Pelos sete cadernos de “Para nascer nasci” (cujos originais foram preparados por Matilde Urrutia e o escritor venezuelano Miguel Otero Silva), Neruda recria sua biografia, auto-contemplando-se entre o desenvolvimento da história pessoal e a coletiva. São de grande interesse para avaliar o estado de espírito retrospectivo do poeta. Comenta seus anos juvenis no Extremo Oriente, personagens chilenos e das mais inesperadas latitudes, a paisagem de Isla Negra, a viagem ao Brasil, a eterna luta entre América e Europa, entre natureza e cultura e a busca de equilíbrio em meio as suas contradições. Possivelmente o ânimo confessional se inicie no “Canto geral”, no qual busca a clave de seu ser e reconstrói episódios capitais.

Em “Prólogos”, Neruda comenta vários livros seus e de outros autores, aproveitando para cantar, uma vez mais, a justiça e a solidariedade.
Em relação aos livros próprios, explica sua gênese e intenção, apresentando seu credo estético.

A leitura das obras citadas, ao conduzir-nos pelos meandros da memória, a recuperar fragmentariamente o passado, contribui ao conhecimento da própria experiência criadora, amplamente explicitada, e ajuda-nos a decifrar as máscaras do escritor em sua busca de identidade. Os quatro lançamentos antecipam as homenagens ao trigésimo aniversário da morte do Prêmio Nobel de 1971, em setembro de 2003.

A partir de “Canto geral”, Pablo Neruda proclama sua fé na função social da poesia. Sem deixar de ser surrealista, e muitas vezes hermético, redobra os esforços pela simplicidade de expressão, tentando depurar sua opulência barroca. O poema pode ser considerado um antecedente crítico-poético da narrativa latino-americana dos anos
60 e 70, antecedente visionário e macabro dos romances sobre ditadores.

CASTRO ALVES DO BRASIL

“Castro Alves do Brasil, hoje que teu livro purotorna a nascer para a terra livre, deixam-me a mim, poeta da nossa pobre América,coroar a tua cabeça com os louros do povo. Tua voz uniu-se à eterna e alta voz dos homens. Cantaste bem. Cantaste como se deve cantar”.

Canto IV – Os libertadores. Do livro “Canto Geral”, de Pablo Neruda

“Na casa da poesia, só permanece o que foi escrito com sangue para ser ouvido pelo sangue”

Do livro “Para nascer nasci”, de Pablo Neruda

BELLA JOZEF é professora emérita da UFRJ, autora da “História da literatura hispano-americana”

Richard Fletcher 2003

Produto: O Globo
Data de Publicação: Sábado 8 Fevereiro 2003
Página: 3
Edição: 1
Editoria: Prosa e Verso
Caderno: Prosa e Verso
Crédito: Bella Jozef
Tipo de matéria: Artigo Assinado

Resgate do épico herói da Espanha medieval

Richard Fletcher sai em busca de Rodrigo Díaz de Bivar, o senhor que recuperou Valência dos mouros e se tornou lenda.

Em busca de El Cid, de Richard Fletcher. Tradução de Patrícia de Queiroz Carvalho Zimbres. Editora Unesp, 290 páginas. R$ 32

Nos primeiros séculos da Idade Média, as salas dos castelos e as praças dos povoados viam-se animadas pela presença de jograis e menestréis que distraíam seu auditório com danças, canções ou longas narrações dos heróis favoritos. Este corpo épico chegou até nossos dias envolto nas brumas do anonimato. A épica era a forma oral de recordar os dados históricos fundadores da nação ao mesmo tempo que propunha novas formas de convívio social.

É importante levar em conta a ideologia dos cantares porque destacam seu significado dentro de uma sociedade feudal. Na Espanha, quase todos os velhos cantares perderam-se, e o que conservamos da épica tradicional espanhola são os quase quatro mil versos do “Poema de Mio Cid”, dois fólios do “Cantar de Roncesvalles” e pouco mais de mil versos das “Mocedades de Rodrigo”, que culminam uma velha tradição.

O interesse pelo poema é renovado, em nossos dias, graças ao volume “Em busca do Cid”, em boa hora editado pela Unesp. Seu autor, o medievalista Richard Fletcher, relata na introdução que, durante a infância, entusiasmou-se pelos “Contos maravilhosos de heróis de todo o mundo” de um tal Crowlesmith. E dentre eles, o Cid, cuja busca começou com uma tentativa de reconstruir o cenário social e político em que ele nasceu, constatando, assim, a existência real do herói, ou melhor, Rodrigo Díaz de Bivar.

Nenhum país da Europa foi invadido e povoado por tantas e diversas ondas migratórias como a Espanha. Segundo Carlos Fuentes, em “O espelho enterrado”, “a identidade da Espanha é múltipla”. Seu rosto “foi esculpido por muitas mãos: ibéricos e celtas, gregos e fenícios, cartagineses, romanos e godos, árabes e judeus”. O núcleo romano ali estabelecido foi despedaçado pelas invasões bárbaras e pela expansão do Islã na Espanha gótica, lá permanecendo por oito séculos. A prolongada guerra da Reconquista contra o Islã e dos reinos cristãos entre si, em prol da hegemonia, transformou monges em soldados, identificando espada e cruz. O mais famoso de todos os guerreiros cristãos foi El Cid (nome dado pelos mouros, em árabe “senhor”, enquanto os cristãos o chamaram de “El Cid Campeador”, o senhor vitorioso). Nascido Rodrigo Díaz de Bivar, perto de Burgos, em 1043, faleceu em 1099, em Valência, que havia recuperado dos mouros.

O mais antigo monumento da literatura espanhola

O “Cantar de Mio Cid” é, assim, o mais antigo monumento da literatura espanhola, cujo manuscrito, hoje na Biblioteca Nacional de Madri, copiado à mão por volta de 1350 (por Per Abbat, que muitos acham que poderia ser o autor), foi descoberto em 1596, mas só veio a ser impresso em 1779, por Tomás Antonio Sánchez.

De autor anônimo, tem rima toante nos versos pares, dividido em dois hemistíquios que oscilam entre quatro e treze sílabas. Divide-se em três partes: o desterro, as bodas e o insulto de Corpes. De acordo com Fletcher, o poema logo atraiu interesse, especialmente no mundo de língua inglesa, em parte porque uma forte preocupação com a Espanha foi despertada, entre os britânicos, pela invasão napoleônica e pela Guerra da Península, e em parte porque o interesse romântico pelo passado hispânico foi estimulado pelas traduções das baladas espanholas e pelos contos de Irving.

No século XIX, continua Fletcher, um jovem orientalista holandês de nome Reinhardt Dozy classificou o “Cantar” como vazio de qualquer valor como testemunho histórico, demonstrando a diferença entre o Cid real e o mítico, quando o personagem histórico tinha sido totalmente obscurecido pelo lendário. O contra-ataque veio em 1929, quando Ramón Menéndez Pidal publicou “A Espanha do Cid”, ressuscitando a lenda de forma reverente, apresentando o poema como histórico, talvez confundindo historicismo e verossimilhança.

O protótipo do cavaleiro, com virtudes nacionais

Para Menéndez Pidal, o Cid personificava o protótipo do cavaleiro, possuidor das máximas virtudes nacionais. Converteu-o na figura paradigmática de todo um povo: bravo, piedoso e generoso, um marido e pai amantíssimo, um herói humano apegado à terra, um vassalo tão fiel que mesmo a hostilidade caprichosa de um rei injusto não foi capaz de abalar sua lealdade. Ele oferecia um padrão a ser seguido por todos os espanhóis. A tal ponto que, com a vitória dos nacionalistas liderados por Franco, o Cid e o general foram explicitamente comparados, numa apropriação da figura do herói.

Autor erra ao tentar destruir o mito heróico

“De que espécie de Cid precisamos hoje?”, pergunta-se Richard Fletcher. Sem tentar responder a esta pergunta, compartilha a afirmação de seu biógrafo mais antigo, o autor anônimo da “Historia
Roderici”: “O que nossa limitada capacidade pôde fazer, nós o fizemos:
escrever de forma breve, e em mau estilo, sobre seus feitos, mas sempre com a consideração mais estrita pela verdade”. Fletcher quer desmitificar o herói do poema, pois, segundo ele, naquela época não havia o senso de nacionalidade como entendemos hoje em dia. Mas cremos que faltou uma interpretação de cunho histórico-social, já que o narrador do poema propõe um novo modelo social baseado no mérito e não apenas na linhagem.

Seja apenas lenda, seja fato histórico, a aura de El Cid é inquestionável. De todos os mitos literários que a Espanha trouxe para a cultura universal, nenhum é tão transcendente como a figura do Campeador. Talvez ele seja o herói mais universal da Espanha, numa época, como a de nossos dias, tão necessitada deles.

BELLA JOZEF é professora emérita da UFRJ, autora de “Diálogos oblíquos”.

Alejo Carpentier 2005

Produto: O Globo
Data de Publicação: Sábado 8 Janeiro 2005
Página: 3
Edição: 1
Editoria: Prosa e Verso
Caderno: Prosa e Verso
Crédito: Bella Jozef
Tipo de matéria: Reportagem

Luzes de Carpentier sobre a América Latina

Obra clássica do “real maravilhoso”, romance é épico sobre revoluções, identidades e sonho

O século das luzes, de Alejo Carpentier. Tradução de Sergio Molina.
Companhia das letras, 377 páginas. R$47

Quando terminou a leitura de “O século das Luzes”, o Nobel Gabriel García Márquez rasgou várias páginas de “Cem anos de solidão”: havia encontrado o livro que gostaria de ter escrito. Esse livro de Carpentier foi a obra recentemente reeditada, em nova tradução para o português, por ocasião do centenário de nascimento do autor.

Filho de um arquiteto francês e de uma violinista russa, teria nascido, segundo pesquisas recentes, em Lausanne, na Suíça, em 26 de dezembro de 1904 e, ainda criança, viajou para Cuba com seus pais.
Viveu os momentos iniciais do recrudescimento da luta contra o ditador Gerardo Machado e em 1928 esteve preso durante 40 dias. Conseguiu escapar para a Europa, radicou-se em Paris, onde permaneceu até 1939, exercendo a atividade jornalística.

Em seus primeiros 11 anos de estada na França (para onde viajou várias vezes e onde morreu em 1980, como Embaixador de Cuba), vinculou-se aos surrealistas, o que contribuiu para formar sua visão sobre as funções e as possibilidades da arte. Baseado no preceito surrealista, à procura da essência do mundo americano e das camadas profundas do ser, passou a cultivar o “real maravilhoso”. Esta conceituação, publicada pela primeira vez no prólogo de “O reino deste mundo”, logo adquiriu vida própria.

Nos anos de 1940, o termo já havia caído de moda mas encontrou acolhida tardia na América hispânica, ao fundir a vanguarda com elementos afro-cubanos onde ressoam tambores africanos e reinam amuletos indígenas e o europeu é uma vaga recordação do futuro.
Indaga: “Mas o que é a história da América toda senão uma crônica do real maravilhoso?”.

Uma das vozes maiores das letras do século XX, suas obras renovam o modo de expressar a América hispânica, a partir da singularidade histórico-social, cultural, étnica e econômica. Ao apresentar a História como uma série de repetições cíclicas, o tempo aprisionado na malha barroca de seus livros, ampliou com erudição a saga de todo um continente.

Em “O século das luzes”, um personagem real, Victor Hughes, comerciante francês de Porto Príncipe, quis transportar em fins do século XVIII à ilha de Guadalupe, onde era mandatário, as idéias libertárias da Revolução Francesa. A seu lado, personagens fictícios, em que se refletem a grandeza e as misérias do protagonista. O enviado da liberdade traz também, paradoxalmente, ao Caribe, o frio cutelo da guilhotina.

O jovem Esteban, um sensível intelectual, serve de fio condutor ao que poderíamos considerar um romance de aprendizagem. A obra alude não apenas às Luzes da razão instauradas pela Ilustração francesa mas às da cabala. Basta ver na epígrafe inicial a citação do Zohar, o clássico do misticismo judaico – “As palavras não caem no vazio” – e a construção do personagem Esteban (stephanus), o primeiro dos “sephirot” ou emanação divina. A ação termina em 1808, quando, ao lado de Carlos e de Sofia, lança-se às ruas de Madri, para lutar em favor do povo, uma profecia implícita das guerras de Independência na América Latina.

Apesar de os homens ocuparem o status do poder, Carpentier concedeu um lugar destacado às mulheres, como Sofia, em “O século das luzes”, talvez um dos personagens femininos mais formosos do século XX, a cuja sabedoria se une Esteban ao final do romance: “Temos de fazer alguma coisa”.

Os romances de Carpentier questionam a história oficial e a reinventam para incorporá-la ao presente que redimensionam. Incluído por Harold Bloom em “O Cânone Ocidental” com quatro livros, foi o primeiro escritor do continente americano a receber o Prêmio Cervantes, em 1977.

A busca de identidade, que tanto ocupara a vanguarda latino-americana, manifesta-se com insistência em sua obra e alcança nela grande complexidade, concebida como produto de diferenças étnicas e culturais. Pretendeu dar-nos um romance épico que mostra os efeitos sobre a coletividade dos grandes movimentos humanos. Conseguiu dar forma à mais candente problemática latino-americana: a falta de identidade ao provar que, ao menos na literatura, essa indefinição define o latino-americano.

BELLA JOZEF é professora emérita da UFRJ, autora de “História da literatura hispano-americana”

Manoel Puig 2005

Produto: O Globo
Data de Publicação: Sábado 14 Maio 2005
Página: 4, 5
Edição: 1
Editoria: Prosa e Verso
Caderno: Prosa e Verso
Crédito: Bella Jozef
Tipo de matéria: Reportagem

12o. BIENAL INTERNACIONAL DO LIVRO – POESIA E FICÇÃO BRASILEIRA

Narrativas entrecruzadas na noite do ventre

Novo romance de Moacyr Scliar mescla ficção, ensaio e crônica histórica

Na noite do ventre, o diamante, de Moacyr Scliar. Editora Objetiva,
168 pgs. R$26,90

Cada novo livro de Moacyr Scliar revela-nos uma faceta diferente desse que é uma das vozes mais significativas da ficção de nossos dias. Sua obra, com mais de 60 volumes, abrange romance, crônica, conto, literatura infanto-juvenil e ensaio. Além disso, o autor recebeu importantes prêmios e possui alguns de seus textos, traduzidos em mais de 12 países, adaptados para cinema, teatro e TV, numa exemplar confirmação de sua capacidade criadora.

Quem percorreu as obras de ficção de Moacyr Scliar já se habituou à sua competência apurada e experiente, à imaginação fértil, assentada em ricos matizes da fala cotidiana. Seu recente romance “Na noite do ventre, o diamante” foi provocado pela coleção da Objetiva, “Cinco dedos de prosa” e reproduz o itinerário de um diamante da Rússia ao Brasil no século XX e paralelamente do Brasil à Holanda, no século XVII, levado por um cristão-novo, dando origem à interseção de várias trajetórias.

O texto incorpora a dimensão irônica do imaginário e, neste verdadeiro labirinto, a literatura elabora os materiais ideológicos e culturais de um modo que os transforma, disfarça e põe sempre em outro lugar.

Personagens ficcionais em meio a fatos históricos

A questão da memória é central, bem como a da representação, e com ambas prende-se à problemática do vivido, da reconstrução do passado, da ficcionalização do real. Através da incursão nos meandros da memória, dos tempos e atmosferas, rico em alusões históricas, culturais e literárias, em contínuas referências a filósofos, pensadores e escritores, o autor nos faz compartilhar de sua erudição, ao circular reflexões e debates que atestam o rigor da referencialidade nos seus aspectos pontuais, tecidos de complexos laços de obscuros afetos.

A linguagem literária espelha a fragmentação do homem em seu mundo. A série de episódios reunidos forma a totalidade do contexto. Não importam apenas os fatos em si mas a maneira de serem narrados, defendendo os analistas da obra da tentação de questionar a validade de todo e qualquer referente. Vários textos entrecruzam-se (como o dos sonhos), ampliando o espaço romanesco e as vivências humanas.

O narrador escava em vidas e revela as multifacetadas vozes do discurso das variadas personagens e também as suas vozes interiores. E se estas últimas enriquecem o romance com seu peso histórico, os personagens ficcionais conferem-lhe força dramática à medida que simbolizam a complexidade de momentos marcantes.

Os personagens são extraídos de seus contextos reais e identificados com precisão, assim como são verídicos os lugares e a marcação temporal que emolduraram as ações. Assim, movendo-se dentro do marco de exatidão histórica, destacam-se personagens ficcionais que ocupam a cena literária com a mesma relevância que as figuras de extração real.
O padre Antonio Vieira cruza seu destino com o de Spinoza, homem afável e cortês, intérprete das escrituras através da filosofia cartesiana, que lapidava as palavras como os diamantes e para quem todo poder precisava ser questionado.

O romance refere uma época não inteiramente fictícia, os fragmentos constituem-se em um retrato do tempo na História contemporânea, criando um texto híbrido onde se mesclam ficção, ensaio e crônica histórica, promovendo a descentralização de um poder textual único. O narrador procura mesclar verdade e verossimilhança, numa pesquisa que instala o leitor a meio caminho entre o factual e o imaginário, num jogo romanesco entre fato e ficção, a dialética entre história e vivência pessoal. Cenas e episódios aliam-se para envolver o leitor no embate entre ficção e realidade A interpelação do imaginário desencadeia um processo criador que mobiliza técnicas de construção suscetíveis de deslocar a narrativa do plano meramente biográfico e factual para aquele outro plano em que os fatos reais são reescritos segundo as estruturas simbólicas da ficção. Estamos diante da crônica de uma época com um antes e um depois, em que o antes passa pela peneira analítica do depois.

Romance subverte a linearidade da narrativa

Fugindo a delimitações temporais e espaciais rígidas, à linearidade de um desenrolar de acontecimentos claros e comuns e à centralização numa perspectiva única que lhe confere coesão, a narrativa subverte os critérios tradicionais de sua formulação, figurando uma realidade complexa desdobrada em multiplicidade de direções. O ponto central situa-se no choque entre a expectativa e a pseudo-solução, no choque entre várias formas de organizar o universo, uma permanente procura do passado e do imaginado como modo de rivalizar com o real/presente
(tempo/espaço) da rotina e do cotidiano, uma harmonia pensada em termo de realização. Ao abandonar o tempo linear, adentrando na circularidade (ou espiral) da pós-modernidade, a narrativa multitemporal interroga os grandes silêncios e amnésias do tempo.

O mundo é transformado em linguagem que o transmite até o instante em que o círculo se fecha, indicando que o que se constrói no espaço da ficção é o tempo humano que passa a corresponder ao dizer. A ficção estrutura um discurso que não é nem verdadeiro nem falso. E nesse matiz, entre a verdade e o irreal, se joga todo o seu efeito, com etapas não previsíveis, uma obra viva e palpitante, para um leitor a quem muitas portas são abertas, com uma surpresa a cada passo, modo privilegiado de conhecer a substância humana no seu nível profundo.

BELLA JOZEF é professora emérita da UFRJ, ensaísta, autora de “História da Literatura Hispano-americana”

Moacyr Scliar 2005

Produto: O Globo
Data de Publicação: Sábado 14 Maio 2005
Página: 4, 5
Edição: 1
Editoria: Prosa e Verso
Caderno: Prosa e Verso
Crédito: Bella Jozef
Tipo de matéria: Reportagem

12o. BIENAL INTERNACIONAL DO LIVRO – POESIA E FICÇÃO BRASILEIRA

Narrativas entrecruzadas na noite do ventre

Novo romance de Moacyr Scliar mescla ficção, ensaio e crônica histórica

Na noite do ventre, o diamante, de Moacyr Scliar. Editora Objetiva,
168 pgs. R$26,90

Cada novo livro de Moacyr Scliar revela-nos uma faceta diferente desse que é uma das vozes mais significativas da ficção de nossos dias. Sua obra, com mais de 60 volumes, abrange romance, crônica, conto, literatura infanto-juvenil e ensaio. Além disso, o autor recebeu importantes prêmios e possui alguns de seus textos, traduzidos em mais de 12 países, adaptados para cinema, teatro e TV, numa exemplar confirmação de sua capacidade criadora.

Quem percorreu as obras de ficção de Moacyr Scliar já se habituou à sua competência apurada e experiente, à imaginação fértil, assentada em ricos matizes da fala cotidiana. Seu recente romance “Na noite do ventre, o diamante” foi provocado pela coleção da Objetiva, “Cinco dedos de prosa” e reproduz o itinerário de um diamante da Rússia ao Brasil no século XX e paralelamente do Brasil à Holanda, no século XVII, levado por um cristão-novo, dando origem à interseção de várias trajetórias.

O texto incorpora a dimensão irônica do imaginário e, neste verdadeiro labirinto, a literatura elabora os materiais ideológicos e culturais de um modo que os transforma, disfarça e põe sempre em outro lugar.

Personagens ficcionais em meio a fatos históricos

A questão da memória é central, bem como a da representação, e com ambas prende-se à problemática do vivido, da reconstrução do passado, da ficcionalização do real. Através da incursão nos meandros da memória, dos tempos e atmosferas, rico em alusões históricas, culturais e literárias, em contínuas referências a filósofos, pensadores e escritores, o autor nos faz compartilhar de sua erudição, ao circular reflexões e debates que atestam o rigor da referencialidade nos seus aspectos pontuais, tecidos de complexos laços de obscuros afetos.

A linguagem literária espelha a fragmentação do homem em seu mundo. A série de episódios reunidos forma a totalidade do contexto. Não importam apenas os fatos em si mas a maneira de serem narrados, defendendo os analistas da obra da tentação de questionar a validade de todo e qualquer referente. Vários textos entrecruzam-se (como o dos sonhos), ampliando o espaço romanesco e as vivências humanas.

O narrador escava em vidas e revela as multifacetadas vozes do discurso das variadas personagens e também as suas vozes interiores. E se estas últimas enriquecem o romance com seu peso histórico, os personagens ficcionais conferem-lhe força dramática à medida que simbolizam a complexidade de momentos marcantes.

Os personagens são extraídos de seus contextos reais e identificados com precisão, assim como são verídicos os lugares e a marcação temporal que emolduraram as ações. Assim, movendo-se dentro do marco de exatidão histórica, destacam-se personagens ficcionais que ocupam a cena literária com a mesma relevância que as figuras de extração real.
O padre Antonio Vieira cruza seu destino com o de Spinoza, homem afável e cortês, intérprete das escrituras através da filosofia cartesiana, que lapidava as palavras como os diamantes e para quem todo poder precisava ser questionado.

O romance refere uma época não inteiramente fictícia, os fragmentos constituem-se em um retrato do tempo na História contemporânea, criando um texto híbrido onde se mesclam ficção, ensaio e crônica histórica, promovendo a descentralização de um poder textual único. O narrador procura mesclar verdade e verossimilhança, numa pesquisa que instala o leitor a meio caminho entre o factual e o imaginário, num jogo romanesco entre fato e ficção, a dialética entre história e vivência pessoal. Cenas e episódios aliam-se para envolver o leitor no embate entre ficção e realidade A interpelação do imaginário desencadeia um processo criador que mobiliza técnicas de construção suscetíveis de deslocar a narrativa do plano meramente biográfico e factual para aquele outro plano em que os fatos reais são reescritos segundo as estruturas simbólicas da ficção. Estamos diante da crônica de uma época com um antes e um depois, em que o antes passa pela peneira analítica do depois.

Romance subverte a linearidade da narrativa

Fugindo a delimitações temporais e espaciais rígidas, à linearidade de um desenrolar de acontecimentos claros e comuns e à centralização numa perspectiva única que lhe confere coesão, a narrativa subverte os critérios tradicionais de sua formulação, figurando uma realidade complexa desdobrada em multiplicidade de direções. O ponto central situa-se no choque entre a expectativa e a pseudo-solução, no choque entre várias formas de organizar o universo, uma permanente procura do passado e do imaginado como modo de rivalizar com o real/presente
(tempo/espaço) da rotina e do cotidiano, uma harmonia pensada em termo de realização. Ao abandonar o tempo linear, adentrando na circularidade (ou espiral) da pós-modernidade, a narrativa multitemporal interroga os grandes silêncios e amnésias do tempo.

O mundo é transformado em linguagem que o transmite até o instante em que o círculo se fecha, indicando que o que se constrói no espaço da ficção é o tempo humano que passa a corresponder ao dizer. A ficção estrutura um discurso que não é nem verdadeiro nem falso. E nesse matiz, entre a verdade e o irreal, se joga todo o seu efeito, com etapas não previsíveis, uma obra viva e palpitante, para um leitor a quem muitas portas são abertas, com uma surpresa a cada passo, modo privilegiado de conhecer a substância humana no seu nível profundo.

BELLA JOZEF é professora emérita da UFRJ, ensaísta, autora de “História da Literatura Hispano-americana”

G. Cabrera Infante 2005

Produto: O Globo
Data de Publicação: Sábado 26 Fevereiro 2005
Página: 6
Edição: 1
Editoria: Prosa e Verso
Caderno: Prosa e Verso
Crédito: Bella Jozef
Tipo de matéria: Reportagem

O jogo da literatura

Em meados dos anos 70, Guillermo Cabrera Infante recebe-me à porta de seu apartamento londrino, em Gloucester Road, onde vive desde 1967.

Acompanha-o Jaime Diego Hugo Santiago Offenbach, devidamente apresentado. Trata-se de um gato siamês, presente durante o tempo todo, enquanto sua mulher, Miriam Gómez, faz as honras da casa, atenta e cordial.

Preparo-me para uma entrevista seguramente pontilhada de humor, em tom brincalhão, conforme imagino, quando, na verdade, foi uma conversa seriíssima sobre a literatura, a memória e o exílio, com um tom de melancolia que perpassava nas palavras, que pesava no olhar do escritor, por vezes distante, perdido em direção à janela, fechada devido ao duro inverno.

Dois fatos o levaram à literatura, realizando uma mudança radical em sua vida: o conto narrado por um professor de características histriônicas sobre um cachorro, o único a reconhecer um viajante que estivera fora de seu país, enquanto ninguém o reconhecia, tornou-o fanático por cachorros e o fez interessar-se pelo que aconteceria antes e depois da morte do animal, após o regresso de Ulisses a Ítaca.

Foi à Biblioteca Nacional e leu a “Odisséia”, eis que dela se tratava.
O outro fato foi haver escrito uma paródia de “O senhor presidente”, de Miguel Angel Astúrias, e publicá-la na revista mais popular de Cuba, “Boemia” (1948).

De saída, confessou-me estar muito feliz em Londres, por viver em uma democracia e ser-lhe permitido escrever e ler o que desejava. Como sua leitora, interessava-me, sobretudo, ouvi-lo falar do processo de criação, de um discurso que participou de todos os mitos literários da
época: experimentação com a linguagem, ruptura com os gêneros e com a representação realista e a paródia (“que me interessa muito, pois é uma forma de criação que extrai a literatura da literatura”), ouvi-lo falar de Havana, seus cafés e vida noturna, espaço sempre presente em suas obras, cidade que deixaria, abandonando (sem abandonar) as raízes como fonte de escritura. Numa obra nutrida de exílio, o rompimento físico e ideológico – com o pai comunista, as diferenças irreconciliáveis com o regime castrista e, por fim, com a própria realidade geográfica do país – seria a condição de sua literatura.

As cidades do exílio são como fantasmas, etéreas e invisíveis, ausentes e presentes, só podem evocar-se na escritura ou nos pesadelos. O exilado percorre todas as cidades mas olha sempre a partir daquela que alguma vez foi sua. A cidade invisível (lembrando Italo Calvino) que assedia Cabrera Infante é Havana, desde aquele dia de 1965 em que partiu para o exílio.

Entre seus livros, “Vista del amanecer en el trópico”, premiado e censurado na Espanha, publicou-se em 1967, profundamente modificado e com o título de “Três tristes tigres”. Em “La Habana para un infante difunto” (1979), obra-prima autobiográfica da intimidade e da memória, epítome da literatura do exílio, seu único objetivo é recordar, uma evocação feita de nostalgia. O narrador identifica-se com uma câmera: o cinema, sua grande paixão, é o inspirador da obra. Os jogos de palavras são em torno do espanhol, não mais da modalidade cubana, numa prosa plena de vitalidade. O espaço, como em “Tristes tigres”, é a rua, lugar da promessa. Na segunda versão de “Vista del amanecer en el trópico” (1974), com o mesmo título da primeira, apresenta um conteúdo totalmente diferente, uma série de breves estampas da história cubana com o propósito de demonstrar que a História, a cubana e todas as outras, não foi mais do que um catálogo de atrocidades desnecessárias.

Escreve uma história íntima, utilizando os mesmos textos cubanos que os historiadores, capítulos referentes a episódios da Revolução cubana, e apresenta os fatos cronologicamente, desde a chegada de Cristóvão Colombo. E a coincidência entre realidade e história é mera coincidência, os fatos reais estão resolvidos como imaginários.

“Três tristes tigres” origina-se de um “trava- língua” que continua “comian trigo en un trigal”. A cacofonia do título e a epígrafe de Lewis Carroll – “E tratou de imaginar como se veria a luz de uma vela quando está apagada” – assinalam duas possíveis leituras. O título indica o jogo de palavras evocando as várias linguagens das noites habaneras. A epígrafe indica o âmbito imaginário e contraditório em que essa leitura (ou jogo) deverá desenvolver-se. Para Cabrera Infante, é “uma das frases mais felizes da literatura inglesa, um compêndio da necessidade metafísica do homem e dessa nostalgia cristalizada que é um dos nomes da poesia”. Todo o romance discorrerá entre a nostalgia da fala reconstruída e a necessidade de transgredir a realidade imediata através dela mesma. A criação é lembrança trazida pela memória, que volta sem cessar. Seu tema é a memória e o modo como ela se desdobra na literatura e no cinema.

A apresentação dos personagens é cinematográfica, cada um aparece em situação dinâmica. É possível interpretar os três tristes tigres como Eribó, o músico, Códac, o fotógrafo, e Bustrófedon, o escritor. A personalidade enigmática deste último é a chave ideológica da relação entre fundo e forma. Põe em relevo que o idioma falado é fonte original da criação literária.

Cabrera Infante tenta a reconstrução verbal a partir da oralidade; um mundo essencialmente verbal, independente de outra realidade que não seja criada pelas palavras. A ausência de estrutura visível e a série de aventuras truncadas que não se resolvem em trama mostram a caducidade da escritura no que considero uma das experiências mais fecundas da literatura hispano-americana do século XX. Num universo percorrido pela palavra, de aparências e de sensações, Cabrera Infante forja um mundo como tempo verbal e tempo oral, sem recriar ambientes ou situações sociais, sem estrutura visível ou problemática central. O autor reconhece o impulso de Lewis Carroll na festa dos paradoxos, o paradigma de Joyce no jogo de palavras, a influência de Borges na significação global dos mínimos episódios. Deseja converter a linguagem oral em literariamente válida, e levar às últimas conseqüências as possibilidades do escritor. Acusa de demasiada seriedade a literatura hispano-americana (“a literatura hispano-americana peca por uma excessiva solenidade”) e, então, tenta transformar a literatura em um jogo que atua sobre diversos planos mentais. É uma atividade solitária, diz, não só “pela solidão em que se tem de trabalhar, sobretudo para mim, que tive um treinamento como escritor, de redação de jornal, onde sempre havia um tumulto de gente que entrava e saía, como pela dupla solidão da página em branco”.

Leio seu discurso, premonitório por certo, ao receber o Prêmio Cervantes, considerado o Nobel espanhol, em 1997: “Que é morrer senão uma forma de organizar-se? Disse-o Cervantes? Ou foi meu outro mestre, Marti mártir?”

Que os livros de Cabrera Infante possam voltar a ser lidos em sua pátria, sujeito e objeto de sua obra.

BELLA JOZEF é crítica literária, ensaísta e professora emérita da UFRJ

Felisberto Hernández 2006

Produto: O Globo
Data de Publicação: Sábado 22 Julho 2006
Página: 4
Edição: 1
Editoria: Prosa e Verso
Caderno: Prosa e Verso
Crédito: Bella Jozef
Tipo de matéria: Artigo Assinado

Terras de memória e sonho que revelam a substância do universo

Entre limites do passado e da linguagem, Hernández anseia pelo inalcançável

O cavalo perdido e outras histórias, de Felisberto Hernández. Tradução de Davi Arrigucci Jr. Editora Cosacnaify, 232 páginas. R$45

Felisberto Hernández nasceu a 20 de outubro de 1902, em Montevidéu, e faleceu em 1964, de leucemia. Os anos 20, período de euforia econômica no Uruguai, foram o momento de descobrimento da vida e do que mais iria lhe importar: a música, as letras, as primeiras amizades significativas, o conhecimento dos primeiros “mestres”, a execução dos primeiros concertos de piano, a peregrinação por aldeias rio-platenses perdidas, com seu smoking de segunda mão e a partitura debaixo do braço.

Começou a estudar piano aos 9 anos com Celina Moulié, francesa amiga de sua mãe. Logo tocava em bares e cinemas, onde improvisava melodias para recriar o clima dos filmes mudos, enquanto escrevia contos e novelas.

Os primeiros livros, elaborados na fase da vanguarda, de caráter lúdico, denunciam afinidade com o movimento e mostram constantes que se acentuarão depois. É o representante de um espírito surrealista, na medida em que escava na realidade, perturbando a inércia das tradições, rompendo com convenções do realismo.

O louco, fundamental nas primeiras obras

Nos anos 40, predomina, em seus contos, a figura do louco, narrador ou personagem, que lhe permite estabelecer conexões inesperadas entre seres e coisas. A loucura é fundamental na obra de Hernández e relaciona-se a outros temas que suscitam uma forma de desvio ou extravio do discurso. O imaginário, antes de constituir um espaço metafórico, é processo de elaboração da realidade. Assim, desde as primeiras obras, a pedra de toque do mundo criado por ele é tentar alcançar, mediante a expressão literária, o conhecimento que traz a experiência sensorial do mundo.

A partir de “Pelos tempos de Clemente Colling” (1942), onde evoca a adolescência e o pianista cego que foi seu mestre, entra em cena um narrador na primeira pessoa que passa a fazer da reflexão sobre a memória a matéria de seus relatos e os converte na narração da errância em busca do passado.

“O cavalo perdido”, que lançou em 1943, é sua obra predileta e surge agora no Brasil na Coleção Prosa do Observatório, que publica textos fundamentais da literatura e do ensaio latino-americanos. Nessa obra, a notável riqueza metafórica resulta do esforço de invenção para comunicar os movimentos da memória. É a passagem da concepção lúdica para outra mais analítica e testemunhal. Aferrar-se ao passado é modo de questionar a identidade. Entretanto, o sujeito enunciador sabe de sua angustiante condição de desterrado da infância: “Agora sou outro, quero recordar aquele menino e não posso”.

É a tentativa de recuperar o olhar infantil a partir da perspectiva do adulto que resgata a aprendizagem da música, a lição de piano de Celina e a aprendizagem do mundo dos adultos. A memória junta objetos, rostos, palavras, espaços, imagens, engendra situações paradoxais, efeitos cômicos e perturbadores.

Juntamente com os sentidos desempenha função primordial na fragmentação do espaço e do tempo. O tema da memória articula-se com o retorno à infância. O autor se aproxima do mundo infantil em contraste com o presente, o que acarreta a questão sobre a partir de onde e como contar. O real é um mistério e sua composição traduz-se como problema da linguagem: nomear para criar e criar para contar. Os personagens usam a metáfora para estender pontes entre os significantes e revelar a substância do universo.

Hernández descobriu novos sistemas de relação entre as coisas, sem alterar a essência delas. Fala-nos do mistério dos objetos – uma cadeira ou uma estátua, objetos que tocou, regidos por lei secreta.

Desprendimento doutrinário para padrões de sua época

Se hoje goza de lugar privilegiado entre os grandes escritores do século XX, nem sempre foi assim. Até a morte foi quase desconhecido, embora entre seus leitores estivessem o pintor Joaquín Torres García e o poeta Jules Supervielle, que chegou a levá-lo a Paris para dar uma conferência na Sorbonne e dele dizia que “tem o sentido inato do que será clássico um dia”. Hernández teve uma produção marginal em relação ao campo intelectual de sua época, não só pelo ambiente de pobreza em que se movem seus personagens, mas devido à recusa do documento realista da narrativa regionalista hegemônica nos anos 20 e da literatura politicamente engajada, num desprendimento doutrinário que hoje o mostra como “experimental”.

Foi uma das vozes mais singulares e refinadas da literatura latino-americana. Para Ítalo Calvino, “é um escritor que não se parece com ninguém, ‘franco-atirador’ que desafia toda classificação”. Seu estilo inconfundível consagrou-o como o criador de uma das variantes mais originais do que poderíamos chamar de subjetivismo fantástico. A inquietação pelo indizível revela uma preocupação pelos limites da linguagem e um anseio pelo inalcançável.

A irrupção dos mistérios do inconsciente assoma como componente irredutível do cotidiano, assim como a fragmentação do corpo e a animação dos objetos. Interessou-se pelos paradoxos que levam ao humor e à ironia, pela incomunicabilidade, pela solidão e pela descrição de ambientes que margeiam as regiões mais profundas da psique. Intuitivo, desejou comunicar com dolorosa perplexidade situações da existência humana. Propôs um encontro com o outro lado, como abertura ao estranho e ao perturbador, o entre-lugar incógnito dos abismos.

BELLA JOZEF é professora emérita da UFRJ e autora da “História da literatura hispano-americana”

Ignacio Padilla 2006

Produto: O Globo
Data de Publicação: Sábado 18 Fevereiro 2006
Página: 4
Edição: 1
Editoria: Prosa e Verso
Caderno: Prosa e Verso
Crédito: Bella Jozef
Tipo de matéria: Artigo Assinado
Literatura como um jogo de identidades

Obra de autor mexicano traça breve alegoria do mal no século XX

Amphitryon, de Ignacio Padilla. Tradução de Rubia Prates Goldoni e Sergio Molina. Editora Companhia das Letras, 176 páginas. R$34

Oque sabemos, antes mesmo de ler “Amphitryon”, é que só na Espanha a obra vendeu cem mil exemplares, foi contemplado com o quarto Prêmio Primavera 2000, da editorial Espasa, e que seu autor, o diplomata mexicano Ignácio Padilla, pertence a um grupo que se intitula Crack.
Nascido em 1968, na cidade do México, estudou comunicação e literatura na terra natal, Africa do Sul e Escócia, além de cursar um doutorado na Universidade de Salamanca. Recebeu vários prêmios nacionais, o Alfonso Reyes (1989), Juan Rulfo para estréia em romance (1994) e José Revueltas de ensaio.

Autor dá voz ao que a História negou ou silenciou

A geração Crack (rompimento) de que participam Eloy Urroz, Pedro Angel Palou, Jorge Volpi e Ignácio Padilla, entre outros, já mostrou a que veio. Seus integrantes têm difundido a narrativa mexicana para fora das fronteiras nacionais, chamando a atenção para a ficção de seu país.

Não tenho dúvidas em afirmar que Padilla é o estilista da geração. A cadência de uma prosa, densa e elegante, mantém-se na competente tradução ao português. “Amphitryon” apresenta a meticulosa construção de uma estrutura narrativa em que a dicotomia fundo/forma se amalgama em um todo, numa sábia dosagem de pormenores. Não podemos deixar de lembrar Jorge Luis Borges – influência constante – que, em um de seus textos, “A arte narrativa e a magia”, diz que a ficção deve consistir num “jogo preciso de vigilâncias, ecos e afinidades”.

“Amphitryon” consta de quatro capítulos e um apêndice, uma espécie de teoria do romance que acabamos de ler, chamado de histórico. O discurso da História, um dos conformadores do texto ficcional contemporâneo, tenta preencher os silêncios e vazios da História, reescrevendo-a. Padilla, em sua arte narrativa, confere uma voz ao que a História negou ou silenciou.

Num trem em que tropas se dirigem para a frente de batalha, dois homens apostam suas identidades diante de um tabuleiro de xadrez. Se ganha, Thadeus Dreyer, recruta mobilizado, consumado jogador de xadrez, trocará sua identidade com a do oponente, Victor Kretzschmar, um empregado da estrada de ferro. Se perde, irá para o front. No término da partida, a labiríntica superposição das personalidades converter-se-á em um eixo ao redor do qual gira uma intriga de ramificações múltiplas, minuciosamente tramada. A incerteza sobre as razões que determinam o movimento dos caracteres e sua implicação nos acontecimentos não abandona nunca quem lê. São os próprios personagens que vivem esta incerteza como peças de um jogo diabólico.

Ao escolher a cena emblemática do xadrez, o narrador mostra-se consciente da filiação entre ficção e jogo, o romance como uma aposta ante as possibilidades de um tabuleiro onde se movem as peças de uma aventura inventada, embebida nas sutis paródias policiais que tanto devem a Borges.

Na mitologia grega, Amphitryon ocupa o lugar das vítimas, embora tenha passado à posteridade como sinônimo de hospitalidade. Padilla recupera a ambigüidade desse anti-herói, nada é o que parece ser.

Personagens reais e fictícios, em que todos podem ser impostores, misturam-se num cenário que passa pelo caos das trincheiras de 1914, o anti-semitismo da Áustria de entre-guerras, a ascensão nazista e a barbárie do holocausto nas câmaras de gás.

No maquiavélico romance, uma pequena legião de sósias treina para substituir certos líderes nazistas em aparições públicas de alto risco. Esses homens decidiram o destino de milhões de judeus e protagonizaram um dos episódios mais trágicos da recente história européia.

Geração Crack rejeita rótulos e estigmas

Com novo repertório de possibilidades, a literatura dos anos 60 no México e seu espaço crítico é o lugar em que o narrador tenta transcender a referencialidade histórica, desencadeando uma ficção problemática e problematizadora.

Os escritores da Geração Crack não querem ser rotulados de “hispano- americanos” nem estigmatizados como exóticos, mas como escritores que se abrem a todos os temas. E ponto. Afirmam que o “realismo mágico”
constitui a visão primitivista e ingênua da cultura de nossos povos.
Aqueles que consideram a América Latina como exótica seriam os eurocentristas. Quanto mais esses escritores querem afastar-se da influência fundacional, bebendo em outras literaturas e estabelecendo outros vínculos, como a cultura de massas, o cinema e a televisão, mais devem eles à América Latina que à Europa. São sobretudo, e por isso mesmo, profundamente latino- americanos.

A pergunta que está por detrás de “Amphitryon” é o tema do mal no século XX, dos nacionalismos e da identidade, o lugar de cada um no plano do século que findou e da História.

BELLA JOZEF é professora emérita da UFRJ e autora de “História da Literatura Hispano-americana”

Jorge Luis Borges 2006

Produto: O Globo
Data de Publicação: Sábado 17 Junho 2006
Página: 3
Edição: 1
Editoria: Prosa e Verso
Caderno: Prosa e Verso
Crédito: Bella Jozef
Tipo de matéria: Reportagem
Chamada: 1 página: PP:Primeira Página

Uma música, uma paixão, um sonho

A formulação estética que Jorge Luis Borges propõe transforma a realidade e fragmenta o tempo

Autor de algumas das mais extraordinárias ficções do século XX, seu nome converteu-se em um conceito e gerou uma dimensão que designamos com um adjetivo: “borgiano”. Do mesmo modo que boa parte da literatura hispano-americana não pode explicar-se em sua totalidade sem levar em conta Borges como um de seus mais importantes catalisadores, não é exagerado afirmar que o mapa da ficção do século XX ficaria incompleto sem o seu nome.

Exerceu considerável influência na caracterização do movimento de vanguarda argentino após a Primeira Guerra Mundial e foi o primeiro escritor a preocupar-se em elaborar um programa que tratava de depurar os cânones modernistas. O modernismo e suas metáforas, temas e palavras já não surpreendiam e encontravam-se longe da corrente que Borges representava, após seu regresso da Europa.

Sua obra em prosa iniciou-se com uma reflexão sobre a linguagem em “El idioma de los argentinos” (1928). Desde o primeiro momento, foi sua preocupação dominante. Através dos versos que ouviu de seu compatriota Almafuerte, compreende o que será a linguagem ao longo de sua vida:
“uma música, uma paixão, um sonho”.

Contos que parecemensaios e vice-versa

Sem dúvida, o narrador originou-se do ensaísta. Há contos que parecem ensaios e ensaios que parecem contos, onde não se pode discriminar entre ficção e não-ficção. Muitos de seus textos, como “O sonho de Coleridge” ou “A muralha e os livros” são lidos como ensaios porque estão incluídos em “Otras inquisiciones”.

Para Borges, uma obra de ficção deveria ser “um jogo preciso de vigilâncias, ecos e afinidades”. Esta premissa explica seu silêncio em relação aos romances do século XX e seu interesse por escritores menores, pelas idéias não tradicionais e os sistemas não usuais na descrição do real. Transforma, glosa e parodia as fontes literárias, dissolvendo-as. Gosta de assinalar a presença, no discurso ocidental, de tradições como a cabala, sem tomar como axioma a hegemonia da tradição greco-romana, fascinado pela idéia tão importante nas especulações da cabala de que há uma língua secreta, anterior a Babel, na base das línguas humanas. Borges chega ao mundo das coisas através da palavra, em seu universo a palavra é o substituto da coisa, ela é o concreto e o estável, o que explica sua atração pela cabala.

Amava as aventuras do pensamento e os enigmas filosóficos eram sua paixão. Conhecia-os em todos os detalhes, como os da identidade
pessoal: por exemplo, o do chinês que havia sonhado que era uma borboleta e ao despertar não sabia se era um homem que havia sonhado que era uma borboleta ou uma borboleta que agora estava sonhando que era um homem. O que não impede seu ceticismo em relação a história, filosofia, teologia, linguagem: “a linguagem é como a lua e tem seu hemisfério de sombra”, dirá, prova da profunda preocupação pelos problemas de seu tempo e sua definição.

Também questionou o próprio fazer literário: as condições em que a obra é produzida, os limites em que se move o trabalho do artista, a quem pede imaginação genuína: “No imaginário reside o infinito”. Só o imaginário pode transcender o real: a literatura equivale à consciência pura do mundo pois, como invenção, é a forma mais elevada da criação. Ao eliminar a fronteira entre os gêneros, resgata todas as tradições. Seus poemas, contos e ensaios convertem-se, assim, em espelhos da condição humana.

Para ele, tudo parecia possível: desde criar o mundo (o Verbo
original) até ocultá-lo e dissolvê-lo como realidade objetiva. A formulação estética que propõe transforma a realidade e fragmenta o tempo, relativizando a forma em sua crítica do sujeito. Com isso, anuncia a pós-modernidade.

Com incentivos inesgotáveis para o imaginário, tratou de decifrar e propor temas que os “iniciados” conhecem, mitos e idéias que sempre voltam, devido à particular sedução que exercem sobre o escritor: o fenômeno da criação, as induções analógicas, as equivalências e os paradoxos, a anulação e as interferências do tempo, os anacronismos, a gravidade do absurdo, a precisão do detalhe, as enumerações díspares, as mutações que são repetições, a brusca solução de continuidade, a redução de toda uma vida humana a duas ou três cenas, a identidade através da persistência da memória, as duplicações do espaço, os espelhismos do sonho, os séculos que equivalem a minutos e os minutos e segundos que são anos, o tema nietzschiano do eterno retorno, da repetição circular de toda a História, o sonho sonhado, o caráter alucinatório do universo, o Aleph (símbolo da literatura; um lugar onde a simultaneidade libera a totalidade), o tigre (velho fantasma da infância), os precursores, os paradoxos. Deliberadamente, altera as intrigas conhecidas, próprias ou não, chegando até a negar a originalidade, como o gaúcho de “La trama”, que não sabe que morre para que se repita uma cena.

Obra que revela aspectos essenciais do homem

Além da deslumbrante riqueza de linguagem, capaz de todos os matizes e além da enorme faculdade de invenção, o aspecto mais emocionante de sua obra é nos fazer sentir esse tremor de confissão íntima com que está abrindo as portas do mundo, revelando-nos aspectos essenciais do homem. Suas audácias estilísticas são sóbrias e profundas. Submeteu o espanhol a uma espécie de reordenamento, remoçou a linguagem com suas adjetivações inéditas, realizando uma mobilização geral do idioma.

Que importa estar ou não de acordo com ele? A questão é sentir-se desafiado, ver-se obrigado a repensar o já pensado, num desafio à inteligência e à sensibilidade, atrever-se a confrontar as próprias idéias com as suas. Exercitar-se na prática, tão saudável, de fazer o inventário do arsenal que reunimos dentro de nós mesmos, reavaliando suspeitas, dúvidas, caminhos múltiplos e simultâneos.

Jorge Luis Borges deixou-nos seus ditos e aforismos, sentenças, boutades, esvaziando as idéias e os princípios de conteúdos únicos, inamovíveis, solenes, apelando sem restrição nem medos à paixão crítica, à dualidade demolidora, à inquietação da verdade.

Deixou-nos os tigres e o labirinto, os caminhos que se bifurcam, as rosas, as milongas, a nostalgia de Buenos Aires. Deixou-nos seu sonho de visionário como um estímulo para a aventura da individualidade.

BELLA JOZEF é professora emérita da UFRJ e autora de “História da literatura hispano-americana”

Vargas Llosa 2006

Produto: O Globo
Data de Publicação: Sábado 23 Setembro 2006
Página: 3
Edição: 1
Editoria: Prosa e Verso
Caderno: Prosa e Verso
Crédito: Bella Jozef
Tipo de matéria: Artigo Assinado

ROMANCE

Uma jornada afetiva pelo passado

‘Travessuras da menina má’ mescla História e memória para retratar uma paixão que atravessa meio século

Travessuras da menina má, de Mario Vargas Llosa. Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. Alfaguara, 302 páginas. R$39,90

Ao completar 70 anos, Mario Vargas Llosa presenteia seus leitores com uma fascinante história de amor e ação: “Travessuras da menina má”, que já figura na relação dos dez mais vendidos em toda a América Hispânica. A obra transcorre desde a Lima da década de 50 até a Madri dos anos 80, tendo como fio condutor a relação tormentosa de Ricardo Somorcucio e sua “menina má”, uma jovem inconformista, aventureira e pragmática, sedutora personagem feminina, cujas pegadas segue, ao longo de 40 anos de encontros fortuitos e desencontros, separações e entrega. A rebelião de Ricardo consiste em ser fiel a uma paixão contrária ao senso comum, que lhe traz a vertigem da incerteza.
Descobre ambientes e personagens singulares a que dedica, na condição de narrador, cada um dos capítulos.

O protagonista trabalha como intérprete da Unesco, alguém que nada traz de novo ao que o conferencista diz e repete as vozes alheias que os autores lhe emprestam. Sua atividade baseia-se na palavra, o que faz, talvez, com que o romancista se valha desse personagem para recriar sua própria existência.

Acompanhamos as mudanças socio-políticas a partir da segunda metade do século XX, período em que se configuram a sociedade ocidental e suas transformações, numa revisão tão irreverente quanto reflexiva, também, das convulsões políticas do Peru, marcadas pelos golpes militares, das guerrilhas dos anos 60 à violência dos 80.

O capítulo inicial remete-nos às primeiras obras do autor, sobre os dias de juventude, quando procura recuperar uma voz vinculada à festiva Lima dos anos 50: “Coisas extraordinárias aconteceram naquele verão de 1950”. A memória, na primeira pessoa do narrador, recupera o mundo idealizado e nostálgico da infância e, com ela, funda os mitos de uma época, que salva do esquecimento, vinculando sua experiência individual às de sua geração. Ricardo Somocurcio revive seu sonho, na dimensão do tempo que continua “para além do mundo e da vida”.

O segundo capítulo se passa na Paris revolucionária dos anos 60.
Reencontramo-nos, no personagem de Paul Escobar, com Alejandro Mayta, de outro romance de Vargas Llosa. No terceiro capítulo, a Londres psicodélica, o nascimento do movimento hippie na Inglaterra dos 70; no quarto, o Japão das finanças, nos anos 80; no quinto, a dissolução da União Soviética; no sexto, o personagem Arquimedes traz inesperadas implicações, que deixamos para o leitor descobrir; e no sétimo capítulo, vemos a Espanha dos 90.

Livro se alinha aos romances “literários” de Vargas Llosa

A obra deixa de fazer parte dos romances “realistas” do autor, com amplos retratos sociais (como “A cidade e os cães” e “A festa do bode”), mas pertence aos que classifica de “literários”, feitos à base de alusões, paródias e pastiches (e cujo antecedente mais próximo é “Os cadernos de Dom Rigoberto”). O contexto não é apenas social e factual, mas o próprio campo literário, com alusões a outros autores, como Onetti e Borges.

“A menina má” será Arlette, guerrilheira castrista; na França, será Mme. Arnoux, esposa de um diplomata francês, clara alusão à “Educação sentimental” de seu admirado Flaubert; na Inglaterra, será mulher de um riquíssimo criador de cavalos e adotará o sobrenome do romancista Richardson. Na metade da trama, em Tóquio, chamar-se-á Kuriko, nome de um personagem de Mishima, será amante de um mafioso japonês e se arriscará em missões na África.

“A menina má” quer afirmar sua identidade e romper as resistências de uma sociedade que pouco mudou, em relação à mulher, desde Emma Bovary.
Vargas Llosa insuflou-lhe a solidão e a rebeldia que fazem dela um ser de carne e osso e, ao mesmo tempo, romanesco.

“Travessuras da menina má” é um romance de aparente linearidade, sem os diálogos telescópicos de obras anteriores. O relato cresce em intensidade a cada página e apresenta dados escondidos que surpreendem o leitor, a justaposição psicológica de ambientes e o contraponto entre os capítulos. Ao procurar afastar-se de toda a ideologia romântica herdada do século XIX, apaga os limites entre realidade e ficção, criando uma admirável tensão entre cômico e trágico. A linguagem define as identidades dos personagens, projetando a desintegração do eu para forjar um eu múltiplo na consciência do indivíduo.

A obra oferece, ainda, uma reflexão sobre o estado de exílio, no difuso presente de alguns personagens. Ricardo Somocurcio é um peruano que vive em Paris, porém, mesmo quando lhe dão um passaporte francês, sabe que lá será sempre um estrangeiro. Mas não o é menos no Peru. Que significa ser peruano ou francês ou turco como Salomon Toledano, um sefardita de Esmirna que fala ladino, vive em Paris e se sente “mais espanhol que turco, embora com cinco séculos de atraso?”.

Vargas Llosa descartou a idéia de ter criado um romance “autobiográfico”, embora reconheça nele algum tom “nostálgico”, quando se refere aos sonhos de juventude, ou em certas notas sobre as “exaltações” que acompanham a experiência amorosa. Numa de suas entrevistas, diz que “como em todos os meus romances, procurei mesclar realidade e fantasia e dediquei minha experiência na construção de um contexto histórico”. Mas, para isso, não aceita a morte do romance como difusor da totalidade humana.

A ficção como ato de “loucura perpétua”

A condição humana é analisada com minúcia. Vargas Llosa inspira-se no narrador objetivo propugnado por Flaubert, para quem a única função do romancista é apresentar os acontecimentos sem julgá-los e com a “imparcialidade que se põe nas ciências físicas”, pois cabe-lhe a construção artística e rigorosa de uma realidade que reflita sobre o real e o retrate, dos aspectos socio-econômicos aos privados, incluindo os psicológicos.

Não por acaso, o romance termina em Sãte, onde Valéry escreveu “O cemitério marinho”. Ao chegar às últimas páginas, as palavras da menina má produzem um efeito de eterno retorno: “Agora que vai ficar sozinho, pode aproveitar, assim esquece a saudade. Pelo menos, confesse que lhe dei um bom material para escrever um romance”. Como sujeito articulador do discurso, a mulher reitera o triunfo da literatura e resgata o sagrado direito à liberdade individual.

Vargas Llosa trata o ofício de contar histórias como encarnação de sua consciência, um ato de loucura perpétua, de rebeldia contra a barbárie do mundo, para torná-lo mais belo através da ficção, cuja busca incessante corresponde à da menina má.

BELLA JOZEF é ensaista e crítica, autora de “A máscara e o enigma

Juan Gelman 2007

Produto: O Globo
Data de Publicação: Sábado 27 Outubro 2007
Página: 5
Edição: 1
Editoria: Prosa e Verso
Caderno: Prosa e Verso
Crédito: Bella Jozef
Tipo de matéria: Artigo Assinado

Sobre amor, luto e exílio

Obra mostra fecundo diálogo do argentino Juan Gelman com outros poetas

Com/Posições – Com/Posiciones, de Juan Gelman. Tradução, introdução e notas de Andytia Soares de Moura. Editora Crisálida, 152 páginas. R$25

Bella Jozef

Momento de rara emoção é ouvir Juan Gelman, uma das vozes mais representativas da América Hispânica, dizer seus poemas, lentamente, marcando os ritmos. Foi o que ocorreu numa tarde inesquecível no início dos anos 90 na Associação Mutual Israelense-Argentina (Amia), em Buenos Aires, poucos meses antes de a instituição ser destruída por uma bomba terrorista.

Quando o júri do Prêmio Juan Rulfo de Literatura Latino-americana e do Caribe 2000 (promovido pela Feira Internacional do Livro de
Guadalajara) premiou o poeta argentino – como fez com Augusto Monterroso, Nélida Piñón, Sergio Pitol e Rubem Fonseca -, estava reconhecendo uma poesia “de luto e de exílio”, vinculada às utopias latino-americanas e à reflexão crítica sobre elas; “poesia sustentada na ética, ponto de encontro entre os sonhos ganhos e perdidos, a métrica perfeita, as dores, a beleza poética”. Ao que se poderia acrescentar, segundo o autor: “o outono, a infância, a revolução, a mulher, a morte, a beleza da mulher e a ausência de Deus.”

Invenção de vozes através da própria voz desterrada

Gelman conheceu a poesia aos cinco anos, ouvindo o irmão mais velho recitar Pushkin em russo. Começou a escrever poemas aos 11, apaixonado por uma vizinha.

A partir dos anos 70, quando entra para o movimento Montoneros, que posteriormente abandonaria, devido a sua linha militarista, conscientiza-se acerca de uma realidade despedaçada, convencido de que “a poesia não ajuda a mitigar a dor, mas a expressá-la”. O exílio vital, a que o obrigou a ditadura decretada na Argentina com o golpe de Estado em 1976, que durou até 1988, soma-se ao da palavra. O poeta tenta, então, recuperar suas perdas através do diálogo com textos de autores da mística judaico-espanhola e sefardita (que escreveram em ladino, na tradição das “jarchas”) como Salomón ibn Gabirol (segundo Heine, “poeta entre os filósofos e filósofo entre os poetas”), Iehuda Halevi (contrário à tendência racionalista na filosofia judaica), Abraham Abulafia, Samuel Hanagid, os profetas Amós e Ezequiel, os Salmos de David, entre outros. Textos híbridos, de amor e exílio.

São “traduções” onde inventa vozes através dos quais fala sua própria voz desterrada. Dialoga, ainda, com formas da época da conquista da América, o espanhol ainda não normatizado de Santa Teresa de Avila ou San Juan de la Cruz. Em palavras de Gelman, “como se a solidão extrema do exílio me expulsasse a buscar raízes na língua, as mais profundas e exiladas da língua”. A escrita mística coincide com a visão do exílio porque o místico é um exilado de Deus e de si, na tentativa de entrar num estado de interiorização. Gelman coincide com o cabalista Isaac Luria na concepção de Deus como o primeiro exilado porque se retira de si mesmo para dar espaço a sua criação. O tema do exílio e a mística permitem-lhe encontrar uma explicação da História.

O exílio é visto como a condição central do ser humano. O de Gelman leva-o a seis anos na Itália, alguns meses na Espanha, vários na Nicarágua, seis anos e meio em França, Suíça, Bélgica, Estados Unidos e México, onde reside atualmente, na Colônia Condesa. Sua vida foi profundamente marcada em 1976 pela perda do filho e da nora, seqüestrados e mortos pela ditadura militar, e dos amigos escritores (Rodolfo Walsh, Haroldo Conti, Paco Urondo). O retorno, seguido do indulto, aconteceu em 1988 à Argentina democrática. Foi o tempo, então, do auto-exílio e da busca pela neta, que só seria encontrada um quarto de século mais tarde.

A começar pelo inglês John Wendell, que apareceu numa antologia publicada pela Casa de las Américas (1969), é extensa a lista dos poetas inventados por Gelman: Sidney West, Eliezer ben Jonon, Julio Greco. Com isto, cria um transbordamento de vozes e funda um espaço polifônico, uma das marcas de sua poética: “No sé quién soy o he sido solo conozco mi desorden”. Diferentemente dos heterônimos de Pessoa, ele escreve “gelmaneando”, criando máscaras de defesa da própria intimidade. Sua linguagem poética é singular, consiste no cruzamento de diversas variantes do uso da língua, nunca cristalizada, ao caracterizar-se precisamente pela instabilidade no tempo.

“Com/posições” (“Com/posiciones”, 1986), ora publicado no Brasil em edição bilíngüe, recebeu o Prêmio Boris Vian. Oferece, em seu fecundo diálogo com outros poetas, um modo de vencer a solidão, numa re-territorialização da palavra e dos mil rostos do real. No “Exergo”, Gelman esclarece que colocou poemas seus nos textos que grandes poetas escreveram há séculos: “Está claro que não pretendi melhorá-los.
Estremeceu-me sua visão exilar e acrescentei – ou mudei, caminhei, ofereci – aquilo que eu mesmo sentia, como contemporaneidade e companhia, minha com eles, habitantes da mesma condição?”.

O tema da nostalgia causada pela distância da amada, metáfora da pátria ausente, converte-se novamente em fundamento de vários textos.
Para Gelman, há três experiências que se assemelham: a poesia, a mística e o amor, porque permitem sair de si mesmo, ao produzir-se o êxtase.

Poeta moldou as palavras até convertê-las em gestos

Em sua lírica do cotidiano, seus poemas trazem a marca da origem, fazendo-se diante de nós, buscando-se em seu destino e na tradição, reafirmando sua identidade no ato de escrever, quando a palavra cala o que diz, presença-ausente de tudo o que lhe era caro e as perguntas não têm respostas.

Um dos traços marcantes de sua poética é a ironia, recurso da lucidez com que o poeta se distancia de seu eu, de sua própria dor, para olhar-se e olhar-nos atentamente com ternura.

Obra de coerência interna, transitou do lírico ao narrativo, do místico ao político, nunca politizado. Desde uma métrica impecável ao rompimento com ela, na procura constante de novos recursos expressivos, moldou as palavras até convertê-las em gestos e mergulhou fundo no território da poesia. Como Mallarmé, deu um novo sentido às palavras da tribo.

BELLA JOZEF é escritora, crítica literária e professora emérita da UFRJ

Ángel Rama 2008

Produto: O Globo
Data de Publicação: Sábado 29 Novembro 2008
Página: 5
Edição: 1
Editoria: Prosa e Verso
Caderno: Prosa e Verso
Crédito: Bella Jozef
Tipo de matéria: Artigo Assinado

AMÉRICA LATINA

Diálogos de Ángel Rama

Artigos e contos mostram a rica trajetória do crítico e escritor uruguaio.

Literatura, cultura e sociedade na América Latina, de Ángel Rama.
Seleção, apresentação e notas Pablo Rocca. Tradução de Rômulo Monte Alto. Editora da UFMG, 208 pgs. R$37

Terra sem mapa, de Ángel Rama. Tradução, notas e posfácio de Roseli Barros Cunha Paulo. Grua Livros, 159 pgs. R$31,80

Bella Jozef

Em boa hora a editora da UFMG lança “Literatura, cultura e sociedade na América Latina”, uma seleção de artigos de Ángel Rama (1926-1983), elaborada pelo professor Pablo Rocca, uruguaio como o crítico em questão. Esses ensaios, publicados em jornais e semanários diversos, evidenciam a trajetória de um crítico atento, de agudo poder de análise, que elaborou uma obra em diálogo com o pensamento latino-americano e europeu.

Em sua conceituação, Rama enfatiza duas linhas principais: a sociologia do conhecimento baseada em Max Weber e Karl Manheim e a sociologia de viés marxista. Embora reagisse à apologia de Lukács contra as vanguardas, interessou-se por seus estudos e até o final dos anos 70 estará presente em sua obra o “método Hauser”.

Seus dotes de crítico e seu enfoque histórico-social são um modelo de interpretação da literatura, referência fundamental ainda hoje em dia.

Contra os conformismos e radical de espírito, foi um defensor do valor original e civilizador da obra cultural americana, de que são testemunho os ensaios recolhidos nesta compilação.

Para “conhecimento interior da matéria literária”, segundo palavras suas, dedicou-se a realizar um programa de ação, teorizando e conceituando a matéria literária como um todo na defesa do nacionalismo e do americanismo. Para que a crítica de um texto alcançasse sua plenitude, deveria ser feita à luz dos fenômenos culturais de seu tempo. Sua visão totalizadora da escrita dentro de um sistema de relações culturais não deixa de lado nenhum interesse do homem, nem as ciências ou a política, nem a economia ou os meios de comunicação. Nenhuma esfera do conhecimento, para ele, se move isolada das outras. O ponto de partida do debate teórico pode ser fixado no artigo “Literatura e sociedade” publicado em “Marcha”, em 1962, no qual ocupou a seção literária de 1945 a 1968 e onde construiu seu projeto de trabalho.

No primeiro artigo, elabora uma visão crítica em torno à confrontação entre duas escolas literárias que representam o passado e o presente.
Alude à permanente metamorfose da produção artística nacional, permeada pelas culturas hegemônicas de uma realidade em dinâmica mutação. Não é casual que este artigo tenha sido escrito no pós-guerra, quando a Europa jazia nos escombros da tragédia coletiva e os Estados Unidos emergiam como o paradigma dominante.

Em “A construção de uma literatura”, reclama um itinerário que permita às letras nacionais visualizar um novo horizonte, questionando o elitismo instalado na paisagem literária uruguaia, que afasta o autor do suceder de seu tempo. Tanto “Nossa América” como “Literatura vigente da América Hispânica” corroboram o compromisso com seu tempo histórico. Observa a busca de uma identidade cultural construída a partir da produção artística.

A segunda parte do livro apresenta textos resgatados da profusa produção, abordando diversos aspectos da cultura e da literatura latino-americana. Em “Os caminhos da crítica-literatura e sociedade”, por exemplo, discorre sobre as relações de causalidade que imbricam a evolução da literatura e da crítica.

Em um ensaio de 1976 analisa o crescimento da produção artística do continente no século passado e propõe uma aventura intelectual de integração que se nutra da diversidade e que a crítica seja capaz de interpretar as especificidades de nossa cultura em meio à diversidade que nos caracteriza. Deve prevalecer uma leitura crítica e autônoma de nossa literatura que nos sirva para compreender melhor o que somos.

Tanto em sua obra crítica quanto em sua tarefa de editor, Rama manifestou seu interesse pela literatura brasileira, que incluiu em seus trabalhos maiores sobre literatura latino-americana, contribuindo a romper o isolamento caracterizador das relações entre ambas culturas.

Os escritos de Rama basearam-se, em boa parte, na necessidade de uma crítica latino-americana, própria, para conseguir uma literatura nacional em cada um dos países e, em seguida, um sistema que integrasse a produção de toda a região, salvando as diferenças nacionais. Com isto, propunha a promoção do estudo da literatura a partir de nossa própria história, desvinculando-nos das influências européias e norte- americanas e só utilizando suas contribuições em função do proveito próprio.

Nos contos, uma forma de compreender o mundo.

Já “Terra sem mapa” é composta por relatos que recontam histórias da infância da mãe do escritor, mesclando realidade e invenção da distância ou deformação da memória: “Imaginei essa terra como ela o fazia: precisa na memória e profundamente querida, e ao fazê-la minha como uma lembrança algo mais distante, convenci-me de que nenhum mapa poderia contê-la”. Nos contos, os núcleos narrativos manifestam-se em descrições onde se delineiam personagens, enredos e situações. Esse gosto de reconstituição social através das festividades, costumes, traz o dia-a-dia conduzido pelo fio de um acontecer ficcional que a memória preenche ou interrompe. É o sentido de tempo e da existência que se descobre, muito proustianamente, ao mesmo tempo que sua perda.

Nesse documentário de vivências da terra, o tempo narrativo e tempo poético misturam-se a configurar a memória difusa de alguns protagonistas, a quem nos afeiçoamos e que têm a cumplicidade do narrador, mas que lhes transfere a função de apontar as perplexidades da própria memória e estabelecer um percurso interior.

“Terra sem mapa”, com sua criação de ambientes e personagens, constitui-se em leitura fascinante, texto que se oferece em construção multívoca. Uma forma de compreender o mundo, uma forma de nele estar e participar.

BELLA JOZEF é escritora e professora emérita da UFRJ

Ernesto Sabato 2008

Produto: O Globo
Data de Publicação: Sábado 2 Agosto 2008
Página: 4
Edição: 1
Editoria: Prosa e Verso
Caderno: Prosa e Verso
Crédito: Bella Jozef
Tipo de matéria: Artigo Assinado

Convite à reflexão sobre a existência

Em sua obra, Sabato busca resgatar essência perdida da individualidade

A resistência, de Ernesto Sabato. Tradução de Sergio Molina. Editora Companhia das Letras, 112 pgs. R$31

Bella Jozef

Ernesto Sábato, um dos principais escritores da América Latina, intelectual polifacético, escritor, ensaísta e pintor argentino, nascido em 1911, vive em Santos Lugares, onde sempre morou, “entre as magnólias e as palmeiras, entre os jasmins e as imensas araucárias” e se dedica às artes plásticas, desde que o acometeu uma deficiência nos olhos. Cheguei a ver alguns de seus quadros, quando lá estive, mas não pensava que levaria a sério esta paixão.

Sabato doutorou-se em física e estudou filosofia na Universidad de La Plata. Em 1938, recebeu uma bolsa para investigar sobre as radiações atômicas no Laboratório Curie de Paris. Em 1945 ele publica “Uno y el universo”, onde se mostra preocupado pelo avanço da tecnologia.
Abandona, então, as ciências para dedicar-se à literatura, pois acredita que “diante da ciência a arte tem uma vantagem impossível de superar: é eterna”.

No afã de descobrir valores humanos permanentes, lançou-se à aventura literária. Caracterizam-no o rigor e a lógica, o sentimento cálido e palpitante e agudas reflexões a confluir no compromisso com os direitos humanos. Nunca temeu críticas de amigos ou leitores, cada vez que mudou de temática ou estilo, transformados ao mudar sua perspectiva diante da vida e da arte.

Em “A resistência”, agora publicado em português, viaja no tempo e narra o que sua passagem pela terra tem sido e deixou de ser. Tudo fica plasmado em cinco cartas e um epílogo, de cunho autobiográfico. O narrador constitui-se a partir da autoridade que lhe confere a experiência ao modo dos velhos sábios das antigas comunidades.

Protesta contra o mundo desumanizado pela ciência e pela tecnologia devido à globalização que provocou uma crise na concepção do mundo, mantendo a constante e radical desconfiança ante o mito do progresso e tudo o que o desenvolvimento tecnológico do novo milênio impõe.
Denuncia o capitalismo e o socialismo científico porque ambos os sistemas, ao entronizar a ciência, subjugaram os valores humanos. As idéias mais candentes do homem atual, que expõe em seus ensaios, ajudam a dar-nos uma compreensão mais nítida das angústias que sofrem os personagens de seus romances.

O principal, para Sábato, é a exploração da condição humana mediante a apresentação de certos tipos de personagens no contexto de determinada situação-limite. O romance é a indagação da condição do homem em sua existência. Cada indivíduo vive rodeado por um abismo de solidão que o separa de outros seres humanos e só pode salvar-se com extrema dificuldade. Os personagens de Sábato representam idéias metafísicas de ressonância universal e encarnam problemas existenciais, seres feitos não só de razão mas de instintos, sentimentos, emoções, o bem em perpétua luta contra o mal. Bruno é um personagem mediador, que recebe as confissões de Martin. É o fio condutor da estrutura interna de “Sobre heróis e tumbas”, comenta reflexivamente os acontecimentos e serve de ponte para os deslocamentos temporais da narrativa. Ambos aparecem em “A resistência” e representam as opiniões de seu criador.

O objetivo final de toda a sua obra é o resgate da essência perdida da individualidade e o conhecimento como um progresso intrínseco.

Partindo da situação concreta da Argentina, problematiza o homem contemporâneo, indo do particular ao universal, com sua mensagem crítica mas sempre esperançosa, convidando seus leitores a refletir sobre o sentido da existência, do que chamam vida.

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BELLA JOZEF é escritora e professora emérita da UFRJ

Poesia Origens Guerra Civil 2009

Produto: O Globo
Data de Publicação: Sábado 10 Outubro 2009
Página: 5
Edição: 1
Editoria: Prosa e Verso
Caderno: Prosa e Verso
Crédito: Bella Jozef
Tipo de matéria: Artigo Assinado

Muitas faces de um país

Antologia poética investiga as principais tradições literárias da Espanha

Poesia espanhola das origens à Guerra Civil; Poesia galega das origens à Guerra Civil; Poesia catalã das origens à Guerra Civil; Poesia basca das origens à Guerra Civil, organização e tradução de Fabio Aristimunho Vargas. Editora Hedra (160 pgs; 128 pgs; 160 pgs; 160 pgs). R$15 (cada volume)

Bella Jozef

A organização de uma antologia deve ser condicionada por determinadas questões prévias — desde logo a de decidir exatamente qual sua função, sua intenção e seu objetivo. Uma antologia deve ser informativa, mas, ao mesmo tempo, de qualidade estética, com textos significativos que sejam amostras válidas da época enfocada. A antologia que reúne, em quatro volumes, as literaturas espanhola, galega, catalã e basca apresenta uma seleção de poemas e poetas dos principais períodos históricos de cada uma delas. Na fixação de balizas cronológicas, optou-se por textos desde as origens (século XII) até a Guerra Civil espanhola (1936-1939). O corte temporal destaca a importância desta guerra para as quatro literaturas, “como fator de ruptura e convergência, pois representa o desaparecimento de toda uma geração de escritores, mortos ou exilados”.

Com organização e tradução de Fabio Aristimunho Vargas, a antologia conta com uma breve e esclarecedora apresentação geral da coleção, seguida de prefácios específicos para cada língua, que destacam as linhas mestras de cada uma. Além disso, cada poeta e poema é antecedido por notas biográfico-críticas, com uma síntese sobre os autores, um quadro sinóptico, fonética sintática e guia comparativo das ortografias portuguesa, galega, castelhana, catalã e basca.
Comentários e notas são claros e precisos.

Edição bilíngue inclui autores pouco conhecidos

Vargas, também poeta, guiou-se pelo gosto pessoal na seleção de poemas e autores, além de só incluir textos em domínio público — daí a ausência de poetas como Álvaro Cunqueiro, Juan Ramón Jiménez, Marius Torres e Orixe. Assim, a atividade literária das gerações mais jovens não está documentada.

Uma grande contribuição é a disponibilidade dos textos nos idiomas originais, além da tradução ao português, o que viabiliza o contato direto com as obras. Além disso, gostaria de destacar o esforço de incluir textos de autores menos conhecidos. Esta é uma boa oportunidade de apresentar uma poesia virtualmente desconhecida dos leitores brasileiros, com a seriedade de quem quer fazer o melhor e a coragem de quem encara os riscos próprios de tais empreendimentos.

As poesias espanhola e catalã tiveram início no século XII. Poetas galegos são conhecidos a partir do século XIII e a poesia basca passou a ser produzida no século XV. Por volta do século X constituem-se os chamados dialetos hispânicos: o “moçárabe” (falado pelos cristãos submetidos ao Islã), o galego, o leonês, o castelhano, o navarro-aragonês e o catalão. De todos eles, serão o catalão, o galego e o castelhano os que, graças a sua expansão para o sul, permanecem como únicas línguas escritas até o fim da Idade Média, momento em que o castelhano adquirirá supremacia no terreno literário.

Quanto ao galego, perdeu sua condição de veículo literário, desde fins da Idade Média, e sobreviveu como fala rústica, protegido pelo isolamento do mundo campesino. A Guerra da Independência e o Romantismo darão novo impulso ao ressurgimento literário da Galícia, preparando a chegada dos grandes poetas da segunda metade do século XIX, entre os quais José Pérez Ballesteros (1833-1918), ausente na antologia, que recolheu infinidade de canções da tradição anônima.
Gostaria de destacar que Rosalía de Castro, fundadora da literatura galega moderna, cuja poesia se inspira na lírica popular trovadoresca, e o grande poeta Federico García Lorca, assassinado na Guerra Civil, escreveram em galego e espanhol.

O século XVI, no qual Castela começa sua época mais gloriosa, significa para a Catalunha o início de uma decadência que se prolongará até o século XIX, quando ocorre sua Renascença, a que se seguem o Modernismo, o Novecentismo e os movimentos de vanguarda. Duas são as causas que se costuma assinalar: o súbito esplendor da literatura castelhana e a entrada da Catalunha na órbita política de Castela, sobretudo a partir da época dos Reis Católicos.

Traduções fiéis ao original e critérios de seleção seguros

A literatura catalã começa a entrar na órbita do castelhano e, enquanto a língua se fragmenta em vários dialetos, os gêneros literários começam a desaparecer, restando apenas uma pequena produção de tipo popular e religioso. O segundo quarto do século XIX representa para a região a introdução do Romantismo e o começo da produção lírica em catalão. Faz falta, entre outros, Joan Vinyoli, com quem a lírica da Catalunha alcança um de seus pontos máximos, e de Bartomeu Rosselló Porceu, que tem obras anteriores a 1936, embora as principais sejam posteriores à Guerra Civil.

A poesia basca é a que mereceu um prefácio mais extenso, e o primeiro fato destacável é seu tardio aparecimento em forma escrita, embora o basco seja a língua mais antiga de toda a Europa. Na seleção de poemas, destacam-se os da tradição oral e uma seleção de poetas, entre eles Bernat Etxepare, autor do primeiro livro conhecido em língua basca, e Xavier Lizardi — pseudônimo de José María Aguirre — um dos mais importantes de todos os tempos.

As traduções da antologia são fiéis ao original, e só cabe louvar o trabalho do tradutor-selecionador, que explicita os diferentes obstáculos com que teve de se defrontar. Houve um seguro critério de seleção, embora possamos questionar se os poemas escolhidos são representativos das obras de seus autores.

Reunindo acima de seis dezenas de poetas/poemas, muitos praticamente desconhecidos fora do seu pequeno meio regional, esta antologia adverte o leitor de que há mais literatura espanhola, catalã, galega e basca, e de que é preciso descobri-las e estudá-las devidamente e enriquecer com elas as galerias do museu da história literária espanhola.

Apesar da reduzida extensão, a antologia — apresentada em formato de bolso, de acordo com as características da coleção em que se integra — bem merece a difusão que lhe desejamos, reconhecendo todo o seu mérito de preencher uma lacuna e prestar bons serviços aos futuros pesquisadores. Acredito que esta é uma obra a ser continuada, com um maior aprofundamento, em especial de algumas das suas rubricas. Não será uma oportunidade para o diálogo entre as literaturas e línguas peninsulares?

BELLA JOZEF é escritora, ensaísta e professora emérita da UFRJ

Vargas Llosa (seu último artigo em Prosa e Verso)

Produto: O Globo
Data de Publicação: Sábado 9 Outubro 2010
Página: 3
Edição: 1
Editoria: Prosa e Verso
Caderno: Prosa e Verso
Crédito: Bella Jozef
Tipo de matéria: Artigo Assinado

Em busca de um realismo rebelde

Ganhador do Nobel, Mario Vargas Llosa renovou a literatura

Bella Jozef

Mario Vargas Llosa, nascido em Arequipa, no Peru, em 1936, é um dos mais importantes representantes do chamado boom latino-americano. A partir dos anos 60, sua biografia e sua bibliografia enriqueceram-se com livros e prêmios, desde o Leopoldo Alas até o Cervantes de 1994, passando pelo Biblioteca Breve, Formentor, Rómulo Gallegos, Príncipe Astúrias, Planeta, para citar apenas os mais importantes. Agora, recebe o Prêmio Nobel para coroar uma vida dedicada à literatura.

Várias linhas confluem nas obras do escritor peruano, intimamente ligadas a sua concepção teórica do romance. A relação entre uma realidade anterior à obra de arte e uma realidade representada é complexa. Sua visão não é estritamente literária, pois considera o escritor testemunha de seu tempo. Em sua cosmovisão, sem perder de vista que a ficção obedece às coordenadas do real, questiona a conceituação regionalista do romance tradicional hispano-americano com o propósito de constituir um universo independente.

Em “A casa verde”, “Conversa na catedral”, “A festa do bode”, cria um mundo que não reduz a realidade. É a realidade em si mesma, “mundo livremente escolhido pela memória e reconstruído a partir dela, em virtude de uma visão poética” que a torna um documento da aventura do homem. A realidade, integrada na obra, oferece-se nas ações, que nada mais são que as relações humanas em sua objetividade.

O romancista organiza, através de novos sistemas de expressão, um mundo ficcional coerente e sobrepõe uma ordem poética ao mundo que falsificou os valores da existência individual e desvirtuou os valores solidários. Procuram dar um sentido à realidade porque, como ele próprio afirmou, “a realidade é caótica; não tem nenhuma ordem. Em troca, quando passa ao romance, sim, tem uma ordem”.

Vargas Llosa assinala a abertura para as modernas estruturas da narrativa contemporânea. Incorpora à tradição hispano-americana técnicas de procedência tão diversa como as do nouveau roman, do impressionismo, do expressionismo, dos romances de aventuras (é leitor assíduo dos romances de cavalaria), a épica, o melodrama, o thriller e a canção de amor. Influíram em suas obras, de acordo com seu próprio testemunho, Flaubert, Tolstói e Faulkner.

A primeira notícia sobre Canudos veio-lhe após a leitura de “Os sertões” de Euclides da Cunha, obra de grande impacto na consciência nacional brasileira, amálgama de ensaio científico, panfleto e relato literário. “Sem Euclides”, afirma Vargas Llosa, “eu nunca teria escrito meu livro”. E sabiamente colocou a seguinte dedicatória: “A Euclides da Cunha no outro mundo e, neste mundo, a Nélida Piñon”.

Com “A guerra do fim do mundo” Vargas Llosa retoma seu interesse pelo romance de cunho épico e histórico. O alcance épico deriva do sopro de transfiguração artística com que forjou os protagonistas e as massas do drama de Canudos, num empenho de criação do “romance total” e de abarcar o mundo de modo absoluto. Parte de documentos históricos e os desconstrói para integrá-los à narração utilizando a obra de Euclides como um documento a mais. Reconstitui o Arraial, descreve a longa campanha militar e as quatro expedições que culminaram na morte de milhares de vidas e o do próprio Conselheiro. Entre os personagens, traçados com nitidez, ressaltam o anarquista Galileo Gali e o jornalista, sem nome, que não é míope por acaso.

História, mito e imaginário se conjugam nesse universo literário, tecido no plano do estético porém nutrido nas fontes do imediato. Ao inventar situações para construir uma obra de ficção, Vargas Llosa enriqueceu um episódio-chave da totalidade histórico-social do continente, que não compreendeu como um episódio isolado. Numa entrevista concedida em Roma ao jornal “I1 Tempo”, ilustrou o significado de seu romance: “Eu ressalto no meu livro a responsabilidade dos intelectuais que favoreceram o massacre […] Tratou-se apenas da fome, da ignorância, da pobreza. Um equívoco que fez escola”.

A relação entre realidade e obra de arte é a que existe entre o que denominou realidade real e realidade fictícia. Questiona a arte, além de traduzi-la e recriá-la em vários níveis, deixando de considerá-la como consequência de uma verdade transitória: enraizada em período concreto da história imediata. Ao superar as velhas fórmulas do realismo tradicional, entende-o como um ato de rebeldia, uma representação horizontal e vertical do mundo. Com isso reforça a tradição social da novelística hispano-americana. Levado pela constatação do encontro violento de duas sociedades incomunicáveis em Canudos, Vargas Llosa mostra como os preconceitos, a intolerância, os temores e ambições políticas, levados ao extremo, podem conduzir ao fanatismo e à intolerância, incapaz de aceitar divergências… Como intelectual latino-americano, de aguda sensibilidade e consciência das injustiças, antes de tudo, um humanista, confirma o compromisso com sua sociedade e seu tempo. Considera que na América Latina contemporânea ainda há Canudos em muitos países, com o que associa o Brasil à América Hispânica numa integração cultural tão desejada e em gestação, como sua obra comprova.

Quando for receber o Prêmio Nobel, levará consigo seus personagens, fantasmas e obsessões, entre os quais o Brasil estará representado por Antonio Conselheiro, Galileu Gai, o jornalista míope, ao lado de Zavalita, Belisario, e a Chunga, expressão todos de sua posição humanista e liberal.

Como disse o personagem de “Tia Julia e o escrevinhador”, alter-ego do escritor, “a literatura, a coisa mais formidável do mundo”.

BELLA JOZEF é escritora, ensaísta e professora emérita da UFRJ, autora de “História da Literatura Hispano-Americana” e “Diálogos oblíquos”, entre outros.